Ensino formal e informal: o exemplo do intercâmbio

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Por Fermín Damirdjian

Qual a função da escola? Uma pergunta simples, curta, sucinta, objetiva, que sugere uma resposta da mesma natureza. A princípio. Somente a princípio. Se traçarmos a trajetória histórica da instituição escolar, veremos, em linhas muito gerais que, na era moderna, ela foi de uma instituição necessariamente exclusivista e praticada dentro de padrões bastante rígidos, para um novo formato em que se tornou obrigatória a absolutamente todos os membros da população de qualquer país.

Ora, enquanto era exclusivista, era perfeitamente coerente que tivesse um  formato rígido e claro sobre quem e como podia permanecer dentro de seus portões. Ao tornar-se a educação, gradualmente, um direito e uma obrigatoriedade universais, seria um contrassenso que a escola mantivesse uma configuração rígida, pautada por um formato único, como se houvesse uma só forma de ensinar, de transmitir conhecimento, de estimular a atividade intelectual, de abrir espaço para um bom desenvolvimento subjetivo e de cultivar noções básicas de ética e de cidadania.

Talvez com essas linhas tenhamos conseguido traçar, de maneira breve, a função da escola. O que nos interessa aqui, em todo caso, é delinear algo sobre o que a escola pode oferecer a essa diversidade de alunos e de metas que ela tem em seu horizonte. Se o público e a meta são tão amplos, também devem sê-lo as atividades e oportunidades oferecidas pela escola a seus alunos. E, é claro, essa diversidade ainda permanece superposta a estruturas que fazem parte da nossa cultura e das concepções escolares tradicionais.

Há muitas experiências de instituições escolares buscando esses formatos, e não é novidade que encontraremos uma grande variedade deles: dos mais convencionais, que remetem ao valor secular da escola, onde a ordem e a hierarquia são parte fundante da trama que conduz os alunos a se tornarem jovens homens e mulheres, até os outros que permitem maior diversidade de escolhas e de trânsito entre saberes, respeitando e estimulando o desejo de aprender e o desenvolvimento das permanentes negociações horizontais que fazem parte da vida coletiva onde inevitavelmente estamos inseridos.

A Escola da Vila não se situa em nenhum desses extremos. Mas encontramos elementos mais numerosos do segundo exemplo do que do primeiro, e será dentro de um deles que encontraremos nosso foco neste texto.

Consideremos os seguintes cenários.

  1. Alunos que,  ao longo do ano, em um encontro semanal de duas horas, vão traçando a trajetória histórica da Argentina, através da qual identificam elementos da economia e da política a partir da década de 40, e que convergiram à situação socioeconômica em que o país se encontra nos dias atuais. Filmes, leituras, aulas expositivas e uma construção de uma linha do tempo em conjunto permitem aos alunos não apenas registrar fatos históricos, mas encontrar correlação com aquilo que já estudaram nas matérias de Ciências Humanas aqui na Vila. Ao longo do primeiro e segundo anos desse segmento, eles já abordaram temas como os modelos de civilização incorporados da Europa e traduzidos, dentre outras formas, em desenhos urbanos encontrados nas atuais metrópoles da América Latina; a concepção de um espaço produzido a partir de seu uso, onde cumprem papel fundamental a circulação de pessoas e de mercadorias; o reconhecimento desse espaço a partir de metodologias de observação objetiva ou de vivências, segundo concepções de diversas correntes da antropologia e da sociologia; os regimes totalitários que se disseminaram na primeira metade do século XX a partir da Europa, e os governos populistas na América Latina; o pós-guerra, a Guerra Fria, as ditaduras militares na América do Sul, a redemocratização nos anos 80, o neoliberalismo nos anos 90 e as crises financeiras dos 2000. Nesse contexto, o grupo de alunos do curso extracurricular “Língua espanhola e cultura argentina”, abordam a notícia sobre o reconhecimento genético do neto da fundadora do grupo Abuelas de Plaza de Mayo, fundado em 1976, em Buenos Aires, durante a ditadura militar. Este neto, hoje com 36 anos, veio a público por ter se submetido voluntariamente a exame de DNA em agosto de 2014. Os alunos da Vila, membros desse curso, estão recebendo a notícia em uma aula conjunta com o grupo de alunos argentinos que estudam no Colegio de la Ciudad, escola parceira da Vila, localizada em Buenos Aires. Os argentinos, nesse caso, atualizam os brasileiros sobre a importância dessa notícia. Os brasileiros, por sua vez, explicam aos estrangeiros sobre o andamento da recente Comissão da Verdade, no Brasil.
  2. “Mapa subjetivo” é o nome dado a um registro de trajetória que se pauta mais pelas impressões do viajante do que o registro cartográfico que ele pode fazer ao percorrer um determinado território. Mais ainda, sua trajetória pode produzir marcas que permaneçam para aqueles que os hospedaram e que conviveram com eles nesses dias. Para além de uma marca afetiva, trata-se de construir, com algum resultado material, os frutos desse olhar estrangeiro que, frequentemente, lança uma nova luz sobre aquilo que estamos habituados a percorrer de forma automática, já que incorporada em nosso dia a dia – o que pode se aplicar a uma paisagem urbana, um lanche que comemos mecanicamente, uma forma de evitar o transporte público em nossa cidade, formas de estudar, de  assistir aula, de fotografar ou do que quer que seja. O olhar estrangeiro oferece um estranhamento que já não temos. As viagens de estudo de meio, em grande parte, procuram aguçar o olhar dos nossos alunos como antropólogos em seu próprio país. Ao realizarem um intercâmbio, recebendo alunos de Buenos Aires e hospedando-se, depois, nessa cidade, inserindo-se no cotidiano de outros adolescentes, são impelidos a perceber características culturais marcantes com as quais convivemos e sobre as quais não nos damos conta. A Vila ofereceu, assim, um espaço para que os alunos argentinos produzissem seu mapa subjetivo de forma a deixá-lo como registro de memória em intervenções plásticas nos jardins e nos corredores da Escola da Vila.
  3. Em contraste com a história e a topografia de duas metrópoles próximas mas muito diferentes entre si, Buenos Aires e São Paulo, o grupo composto por argentinos e brasileiros que compõem o intercâmbio tem uma aula sobre a história de São Paulo e seu desenho urbano. Como preparação para uma saída de todo o grupo para o centro da cidade, montamos uma aula com o mapa aberto na classe  e o registro dos diferentes momentos de ocupação de São Paulo, desde as primeiras construções às margens do Tamanduateí até seus crônicos problemas de transporte, passando pelos bolsões residenciais desenhados pela Companhia City. Feito isso, o grupo sai para experimentar essa dificultosa locomoção pela cidade até o Mercado Municipal e circulação em seu entorno. Experiências similares aguardam o grupo em Buenos Aires.

Essas três situações pinceladas rapidamente nesses parágrafos indicam os traços de uma atividade voluntária, extracurricular, que em momento algum deixa de estar vinculada ao repertório apresentado aos alunos na Escola da Vila em sala de aula. Por isso é que se torna inevitável descrever esta proposta sem passar por tantos elementos culturais, sociológicos, perceptivos, históricos, ou com tantas outras adjetivações possíveis.

Por que conceber uma alternativa como essa? Porque para muitos a sala de aula é suficientemente desafiadora, enquanto para outros há algo a se buscar para além dela. Isso não significa que nos atemos ao rendimento dos alunos, para só então oferecer mais. Mas significa que há muitas formas de aprender e de deparar-se com desafios. Há um exercício necessário a todo aluno para buscar a teoria na sala de aula, conseguindo ouvir e diferenciando uma simples leitura de um verdadeiro estudo de um texto. Ainda assim, para além disso, são muitos os alunos que ora complementam esses estudos com outras possibilidades, ora encontram em espaços diferenciados do convencional uma oportunidade de desenvolver competências de forma exponencial, auxiliando inclusive sua prática de aluno dentro da classe.

Experimentar uma vivência pessoal junto a um estrangeiro hospedado em sua casa, e a um grupo que se forma em torno de um intercâmbio internacional é uma maneira muito rica de se aproximar daquilo que a escola se propõe a oferecer: estimular a atividade intelectual, abrir espaço para um bom desenvolvimento subjetivo e cultivar noções básicas de ética e de cidadania. E, é claro, essa é apenas uma forma possível. Há muitas outras em andamento em nossa escola e em muitas outras instituições. Sempre vale a pena compartilhá-las, pois o desafio é grande.