Fronteiras

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Por Fermín Damirdjian

"Como podem estudar assim? A gente fala, insiste para desligar o celular, o computador... Mas não adianta." Essas palavras resumem uma queixa comum − e legítima − de pais e mães que veem um filho com um desempenho escolar em queda, diante de um orientador que o convoca a diagnosticar os pontos que dificultam os estudos do aluno em sua rotina.

Estamos acostumados com um modelo de sala de aula que prima pelo foco de muitos sobre a atuação de um único emissor: o professor. O estudo em si também goza de uma representação consagrada ao longo de séculos, desde que o homem aguçou sua vista sobre pequenos códigos gráficos que, em seu conjunto e articulados seguindo alguns padrões, contam longas histórias, compilam conhecimentos acumulados, elaboram conceitos. Desde a biblioteca de Alexandria, passando por monges enclausurados e detentores de uma sapiência exclusiva para a época, pelo afã enciclopedista da Era Moderna, chegando até à obrigatoriedade da educação acessível para toda a população mundial, o formato de uma sala de aula ou de uma cena de leitura mudou relativamente pouco.

Se nos concentrarmos mais exclusivamente na última etapa dessa trajetória civilizatória, percorrida de forma grosseira pelas linhas acima, veremos que a sala de aula, consolidada por um modelo educacional europeu que se propagou na mesma proporção que sua penetração econômica, política e cultural durante os dois últimos séculos, mudou pouquíssimo. Falar em "sala de aula" nos dias atuais ou duzentos anos atrás, poderia evocar no ouvinte a mesma representação: em sua essência, alunos ouvindo um professor dentro de uma sala.

Poderíamos inferir que uma áurea mais nobre ou mais degradada interferiria nessa representação, além de outras variáveis. Mas, o modelo a ser perseguido, inclusive para pensarmos a sua qualidade, é o mesmo.

A filósofa e cientista social argentina Paula Sibilia discorre longamente sobre o que perdura e o que se degrada desse modelo, além dos motivos de ter se solidificado de tal forma em escala planetária.

redes ou paredesEm seu livro Redes ou paredes: a escola em tempos de dispersão (2012, Contraponto), a autora oferece consistentes elementos para uma reflexão sobre os rumos ainda desconhecidos para onde pode caminhar a escola, diante de um formato que se vê desgastado, sem, porém, vermos motivos para abandonar a obrigatoriedade de sua prática. No entanto, é difícil pensar em seu formato de forma indissociável de seu propósito. O objetivo foi alguma vez a organização, a obediência, a contenção, seja de povos europeus habitantes de centros urbanos que cresciam exponencialmente, seja de populações colonizadas mundo afora.

Qual o propósito da escola no mundo de hoje? Por que ela é obrigatória e aberta a todos, ao contrário do exclusivismo socioeconômico que a caracterizava em suas origens? Seria o seu propósito a instrução técnica, para capacitar pessoas para o trabalho? Onde ficariam valores e necessidades que extrapolam o saber instrumental que capacitaria os alunos apenas para um ofício? Como incluir nesse formato a incorporação da ética, da cidadania, da formação de caráter?

Paula Sibilia apresenta fortes, variados e evidentes indícios da degradação do formato convencional escolar. Apresentá-los seria extrapolar, e muito, o espaço disponível neste texto. Não obstante, poderíamos apenas mencionar a incorporação dos recursos digitais como uma influência inevitável nesse modelo escolar que já ultrapassa sua consolidação e se encontra em busca de novas alternativas.

Busquemos inspiração em uma cena frequente no dia a dia escolar: o telefone toca na sala da orientação educacional. Uma ligação interna comunica que o pai ou a mãe de um aluno ou aluna encontra-se na secretaria para levar o filho, no meio da manhã. Como e por que a mãe levaria seu filho embora? Não raro, algum aluno sente uma indisposição física e se comunica imediatamente com seus responsáveis para virem buscá-lo e levá-lo para casa. Por mais acostumados que os educadores possam estar com essa cena, ela sempre os surpreende. Os esforços em uma instituição que, para além da ortopedia de seus corredores, paredes e horários, busca também a participação dos alunos dentro de seus propósitos, parece solapada por uma força invisível que atravessa os limites físicos e mantém os alunos conectados a tudo aquilo e àqueles que estão fora da escola. Consta que, na prática didática, as propostas estão quase que permanentemente conectadas a fontes de informação digitais, só que coordenadas pelos professores em sala de aula, em cujas propostas estão incluídos equipamentos que permitem o acesso a vídeos, artigos científicos ou edição de textos dos próprios alunos. Ainda assim, o foco é difuso e escapa. Alguns alunos, acometidos por uma dor de barriga, parecem esquecer os educadores com quem convivem diariamente e acionam seus pais. Não está demais dizer que, não raro, o oposto também ocorre: os pais precisam saber se os filhos podem faltar no treino de basquete à tarde para agendar o dentista, e os consultam, também em tempo real.

o show do euEssas seriam as redes e as paredes que intitulam o livro de Paula Sibilia. Essa é, ainda, uma obra anterior a O show do eu: a intimidade como espetáculo (2008, Nova Fronteira), em que a autora discorre sobre a transformação da noção de intimidade nos dias atuais. Para além da frequência do uso da rede, a autora buscou nos blogs do tipo "diário íntimo" um elemento riquíssimo para pensar a necessidade de se publicar a si mesmo na medida em que se vive experiências pessoais, concretas ou não, caracterizando um novo modelo de subjetividade.

Nessa obra, Paula Sibilia procura dissecar os hábitos cotidianos que caracterizam esse recém-estreado século XXI. Para além da comunicação de uma dor de barriga via WhatsApp, da publicação em redes sociais de uma mordida de um misto-quente ou de um prato requintado, de uma reflexão sobre a escassez de ursos polares ou da crise migratória na Europa, o hábito de publicar e ler diários íntimos na internet permite entender algo sobre novos referenciais na constituição moral e subjetiva.

siteTeremos oportunidade de ouvir e conversar com a autora em uma visita à Escola da Vila, em abril, para tratar desses temas de modo mais rico e aprofundado. Em dois momentos diferentes, um voltado para a equipe de professores e outro voltado aos pais dos nossos alunos, Paula Sibilia apresentará suas reflexões e teremos o prazer de fazer-lhe algumas indagações sobre essa rápida transformação, na qual, para nosso espanto, a abertura digital e a prática multifocal de um jovem nem sempre é improdutiva e impeditiva de bom desempenho acadêmico, profissional ou pessoal. É apenas extremamente diferente daquilo que esperamos.

Precisamos saber mais sobre isso!