Entre o devaneio e a realidade

Escola da Vila

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Por Andrea Polo

Numa breve viagem de metrô, entre as estações Butantã e Luz, aprendi muito numa conversa com uma criança de seis anos e sua mãe! Estávamos sentados próximos, e ele, supertagarela, perguntou primeiro:

- Você vai trabalhar?

- Eu não, e você, pra onde vai?

- Eu vou para o trabalho da minha mãe e depois vou para a escola!

- Ah! Você fica com sua mãe um pouquinho?

- Não, a gente só passa lá e vai para a escola. Depois ela me pega!

Para mudar o rumo da prosa, já que o garoto era bem conversador, resolvi perguntar se ele gostava de andar de metrô:

- Quando eu “era” criança eu gostava mais, porque achava que estava dentro de uma nave espacial!

- Você pode achar que está numa nave ainda! O metrô tem cara de nave espacial pra mim também!

- Eu não acho, não é, mãe? Agora eu sou grande, tenho seis anos, ó… e rapidamente me mostrou os cinco dedos de uma mão e um da outra.

A mãe, nada tagarela, olhou para mim com simpatia e mexeu a cabeça com um sorriso afirmativo.

- Ah, mas eu não acho que seus seis anos te impedem de pensar que o metrô pode ser uma nave e que estamos indo para outro planeta...Você quer ir pra onde?

- Eu? Eu... quero ir para Saturno! Rapidamente ele “embarcou na brincadeira”.

- Então vamos fazer de conta que estamos indo? Como num passe de mágica, aquelas propagandas eletrônicas que ficam do lado de fora do trem, mostraram uma nova versão do filme do Super-Homem e a imagem que víamos à nossa frente era do herói voando para atingir uma “bola de kriptonita” no espaço!

- Olha, ali! Estamos quase chegando a Saturno, eu disse.

Percebi o quão maravilhado o garoto estava por voltar a pensar, dentro de sua lógica de seis anos, que poderia sim fazer de conta que o metrô era uma nave, ou qualquer coisa que ele bem entendesse. Nunca quis tanto permanecer por mais tempo numa linha de metrô…

A mãe do menino, ao se despedir de mim, comentou:

- Ele é superprecoce, deu para perceber? A gente incentiva muito que ele cresça e entenda as coisas como elas são, mas agradeço a atenção que você deu para a “criancice” dele!

Nesse momento, o sorriso sem jeito foi meu! Não tive tempo suficiente para dizer para aquela mãe que a fantasia, o devaneio e a criatividade andam de mãos dadas com as crianças e que cabe aos adultos oferecerem elementos para que elas se sintam capazes de criar suas próprias teorias sobre “as coisas”!

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Para as crianças, o mundo está repleto de objetos misteriosos, de acontecimentos incompreensíveis e figuras indecifráveis. Longe da lógica adulta, já ouvi muita poesia construída por gente pequena:

- Sabe aquelas plantas que ficam na beira da areia? São os cabelos do mar…

- Eu dei uma voltinha e fiquei tonta... se eu der uma voltona eu vou voar…

Eu descobri que nessa pontinha da caneta tem muita tinta, parece um pincel preso.

Quando eu durmo, acontecem muitas coisas que não acontecem quando estou acordada…

 - Quando eu canto essa música, é como se uns flocos de neve saíssem da minha boca...  

- Dá pra colar com cola, com fita crepe e com o pensamento. O pensamento é um tipo de cola que gruda o que a gente sabe.

-  O sol é bem mole…

- Você já tocou nele para saber se é mole?

- Não, mas ele me tocou, me deixou bem ardido, então ele deve ser bem mole para chegar até aqui!

Adoro colecionar pensamentos filosóficos das crianças, dedico tempo especial para escutar e sempre saio maravilhada com o que ouço! Borges, escritor argentino que eu amo, diz que “estamos rodeados de beleza, estamos rodeados de poesia, só se trata de poder vê-las”. As crianças dão conta de fazer isso por meio da brincadeira, da literatura, das narrativas que constroem enquanto elaboram explicações para o “indizível”.

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A criatividade não é dada por nós às crianças como herança genética, ela é construída com muita escuta e confiança. Eles precisam acreditar verdadeiramente que suas ideias têm valor, e essa dimensão criativa ganhará outras proporções na vida adulta, quando forem capazes de olhar a realidade com olhos investigativos, questionadores e solidários, sem perder a capacidade de embarcar em devaneios e sonhos, que cá pra nós, não foram esses que nos trouxeram até aqui?

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