A alfabetização de nossos tempos

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Por Miruna Kayano, coordenação do Fundamental 1

Depois de quase um ano de trabalho intenso e conversas constantes em um grupo no qual a alfabetização é um dos focos de investimento, a professora organiza uma roda com todas as crianças e distribui algumas folhas que, para surpresa da classe, não estão em branco.

Alguém já escreveu aqui!“, uma das crianças comenta.

Tem nome, espera, é o meu!“, outra observa.

Pessoal, esta folha foi feita por vocês no começo do ano. Será que lembram? Vocês tinham que escrever uma lista dos cinco animais de que mais gostavam. Se não lembrarem eu posso ajudar vocês. Será que mudou alguma coisa na escrita que está aí no papel?“.

A turma toda se agita, começa a conversar, e uma verdadeira investigação se instaura na sala de aula. “Eu acho que aqui eu escrevi CACHORRO, mas eu não sabia que tinha o H no CHO…“, “Eu aqui escrevi MACACO, mas eu coloquei só o A, mas eu sei pelo nome da MARCELA que é o M e o A!“. “Nossa, eu escrevia muito estranho!!!!!“.

Colocar crianças no início de sua formação leitora e escritora diante de uma proposta que lhes ajude a tomar consciência de seu percurso de aprendizagem antes de chegarem a escrever de forma convencional faz parte de uma concepção que considera a alfabetização como algo que vai muito além de uma mera ação de decifrar um código, desvendar fonemas ou combinar sílabas. Esta e muitas outras propostas partem de uma ideia na qual todo processo de aprendizagem é resultado de um processo ativo e consciente do sujeito que aprende, e que, quanto mais consciente dos desafios, dos caminhos, das idas e vindas até aprenderem algo, mais poderão utilizar as novas habilidades construídas para estabelecer as aprendizagens subsequentes.

É possível alfabetizar “mostrando” sons, fonemas, sílabas isoladamente? Sim, é possível. É o mesmo que alfabetizar considerando as hipóteses das crianças, dialogando com suas ideias, mesmo que distantes provisoriamente da escrita convencional? Não, não é o mesmo. Porque ainda que, ao final, a escrita da palavra MACACO seja a mesma, ou seja, possível de ser lida por todos, o que a criança pode fazer com esta palavra, para além de escrevê-la por pedido de outro, dependerá inteiramente do percurso trilhado dentro e fora da escola.

Assim, alfabetizar não é considerar as crianças como sujeitos totalmente carentes de conhecimento sobre o alfabeto, os sons, as letras. Não é deixá-los esperando autorização de outros para escrever, não é dizer que só podem escrever palavras com estas ou aquelas sílabas que já conhecem. Alfabetizar é incentivá-los a analisar escritas, a pensar sobre estes registros com seus colegas, a olhar palavras com letras semelhantes, a tentar entender como as mesmas se organizam. É convocá-los a escrever, escrever, escrever, muito, e ler, ler, ler muito também, mesmo que de forma diferente daquela que nós adultos alfabetizados conseguimos entender.

Um processo de alfabetização que vai além de oferecer sons e sílabas considera que é essencial que as crianças saibam consultar todos os tipos de portadores escritos: listas, rótulos, tabelas, bilhetes, palavras, para que localizem a informação que desejam. Esta consulta tem o suporte constante e planejado do professor, mas não como alguém que possui exclusivamente o saber, mas como alguém que acompanha e desafia a encontrar mais e novas fontes de conhecimento, porque confia na potencialidade de cada um. O professor alfabetizador não é alguém que entrega informação, mas alguém que ajuda as crianças a estabelecerem relações, profundas, entre o que sabem, e o que o entorno lhes apresenta, para assim poderem tomar sua posição sobre como escrever.

Todo sujeito escritor precisará tomar uma posição. Se deseja escrever com estas ou aquelas palavras. Se usará tal pontuação. Se vai citar este exemplo ou deixará uma descrição. Se vai realizar perguntas ou registrar respostas. O sujeito alfabetizado é este, não o que reproduz algo que alguém lhe mostrou, mas um escritor que analisa todo o processo no qual está imerso e decide, de posse de inúmeras informações, quais utilizará para escrever o que deseja.

Assim, pensamos que alfabetizar é considerar não apenas as crianças de agora, mas também os sujeitos leitores e escritores que serão no futuro. Alfabetizar significa valorizar não só a escrita final convencional, mas tudo o que foi feito no percurso até que fosse alcançada. Porque tomando consciência do processo é que esses sujeitos podem reutilizar as habilidades construídas para outras situações e desafios a que a cultura letrada os convocará. Confiar em que podem investigar, buscar, que podem produzir mesmo sem ter certeza, pois o conhecimento pode ser ampliado por meio dos muitos recursos que existem à disposição. Uma verdadeira alfabetização sabe que não se trata de ter a informação, mas de saber de que forma utilizar toda a informação para aquilo que se deseja.


Artigo escrito para o Grupo Critique, e publicado em seu BLOG, em 21 de março.

Esta é a alfabetização de nossos tempos.