Modos de olhar

Por Marisa Szpigel - Zá

A fotografia, linguagem explorada pelos estudantes do oitavo ano, dispara ações que rompem com os modos de olhar cotidianos. Entre elas, a possibilidade de olhar detalhes que estão bem perto, mas que passam despercebidos e são quase invisíveis. Os elementos que estão distantes, os limites que o olho alcança também podem ser observados.

As propostas para trabalhar com a linguagem fotográfica são inúmeras, mas, determinar que o campo de investigação seja o espaço, os lugares por onde as pessoas circulam (ou não circulam), implica em uma operação complexa: ao mesmo tempo clicar e pensar sobre a relação que se estabelece com o lugar onde a foto é realizada. Afinal, para fotografar, é preciso estar no lugar.

Nelson Brissac faz uma reflexão importante sobre as relações entre as transformações na cidade e os modos de olhar: “Mudanças na estrutura urbana, na arquitetura, nos meios de comunicação e transporte viriam alterar profundamente a própria constituição da realidade. Hoje o real é ele mesmo uma questão. As autopistas de alta velocidade – além da informatização – transformam por completo o perfil das grandes cidades e, portanto, a nossa experiência e nossa maneira de ver. O indivíduo contemporâneo é em primeiro lugar um passageiro metropolitano: em permanente movimento, cada vez para mais longe, cada vez mais rápido. A velocidade provoca, para aquele que avança num veículo, um achatamento da paisagem”.

É curioso pensar como o visor da câmera, que recorta a paisagem, ao invés de diminuir, pode ampliar as chances de um olhar mais cuidadoso. A máquina fotográfica, desse modo, é encarada como ferramenta que funciona como extensão do olho, que, na busca de um foco, instrumentaliza o olhar.

Os elementos próprios da linguagem fotográfica vão apurando a observação e não ocupam o lugar de mero formalismo. São eles que permitem uma reflexão sobre o campo de visão. Por exemplo, quando pedimos um enquadramento panorâmico, queremos que o olhar abarque uma grande extensão, provocando uma análise desde o que está próximo até o mais longínquo, uma busca pelo horizonte, tão pouco visitado e tão escondido na paisagem.

Fotografar para revisitar a escola

Quando convidamos os estudantes a caminhar pela escola para fotografar, para revisitar os lugares por onde passam diariamente, queremos de algum modo provocar uma situação na qual o tempo de olhar seja outro, mais lento e contemplativo. A própria ideia de fotografar em preto e branco coloca uma restrição que rompe com o olhar que já traz as imagens prontas, mastigadas. Além disso, os estudantes são orientados a buscar na paisagem elementos geométricos, os contrastes entre luz e sombra, experimentar diferentes ângulos e enquadramentos. Todas as orientações exigem uma busca aguçada, um novo modo de olhar.

Quando os estudantes são desafiados, por exemplo, a buscar na paisagem formas geométricas, torna-se mais visível a ação do homem sobre os espaços. As relações entre as áreas construídas e os elementos da natureza se evidenciam por superfícies de diferentes qualidades, tais como texturas, simetrias, nuances de cinza e contrastes. Além disso, as fotografias de qualidade geométrica agradam ao olhar do observador e, muitas vezes, surpreendem o fotógrafo, por sua organização, composição e ritmo.

Para registrar o movimento da rua

Após o primeiro mergulho na fotografia como linguagem, os estudantes vão para a rua. Desta vez, com o olhar fotográfico mais preparado, o desafio é perceber um pouco o movimento da cidade. Na própria ação de clicar, pensar: “Como clicar em um lugar em que não se está protegido pelos muros da escola?” e refletir: “O que acontece no entorno da escola enquanto estudamos?”.

O objetivo de fotografar as ruas próximas à escola é favorecer a articulação entre os aspectos documentais e os formais já trabalhados anteriormente. Por esta razão, os jovens foram convidados a explorar os planos – desde os mais próximos aos mais distantes, a escala de cinzas, elementos geométricos e pessoas interagindo com o espaço. A saída para fotografar o entorno da escola tem também por objetivo preparar os estudantes para a terceira proposta de fotografar no centro histórico de São Paulo.

 

 

Fotografar pessoas é mais do que fazer um retrato. Estabelece-se uma relação entre o fotógrafo e o fotografado, o que implica em parar para pensar como um olha para o outro. Se a pessoa fotografada percebe que será clicada, como vai reagir? E se as pessoas estão ao longe? Fotografar pessoas coloca a questão: pedir ou não permissão para fazer a foto? Esta foi uma questão que foi discutida antes da saída. A apreciação ajuda bastante em relação à tarefa de fotografar pessoas. Quando diante das fotografias do fotógrafo Cristiano Mascaro, a figura humana é elemento da paisagem, mais uma entre outras. Nesse caso, as pessoas nem percebem que estão sendo fotografadas. Mas o fotógrafo as percebe como silhuetas, figuras sem rosto. Não importa quem são; são parte da paisagem urbana e misturam-se com ela.

Quando a expressão corporal ou facial é o foco, como fazer isso? Pedir para fotografar pode tirar a espontaneidade da relação da pessoa com o espaço, com o acontecimento. Cartier-Bresson é exemplar nessa difícil relação entre o fotógrafo e o fotografado, quando capta o momento decisivo. Pierre Verger, francês naturalizado brasileiro, também foi importante para compreender como o fotógrafo pode fotografar de dentro do acontecimento, para captar a expressão do povo na relação com a cultura. Cabe a cada estudante entender o momento, refletir e decidir como agir diante do difícil dilema.

Olhar a cidade

“Existe uma figura muito curiosa e fascinante, que dedica seu tempo a vagar pelas ruas, no intento de observar o que acontece ao seu redor, de captar algo de mais perene no cenário urbano. Este passante se locomove a pé e sem pressa, como requer qualquer “trabalho” de análise da vida cotidiana que se preze. Tal personagem atende pelo nome de flâner, termo criado por Baudelaire em Paris do século XIX, definido por ele como um modo de olhar: “uma pessoa que caminha pela cidade a fim de experimentá-la”. Esta é a frase que inspira a ideia de propor a visita dos alunos do 8º ano ao centro histórico de São Paulo, para provocar descolamentos na cidade, instigar a experiência de ser estrangeiro em sua própria cidade e por que não dizer, como propõe Nelson Brissac, fazer com que os estudantes vivenciem o olhar estrangeiro, contrapondo-se ao olhar atual: “(...) capaz de ver aquilo que os que lá estão não podem perceber. Ele é capaz de olhar as coisas como se fosse pela primeira vez e de viver histórias originais”.

 

 

A visita ao centro histórico de São Paulo abre a possibilidade de investigações mais particulares. Alguns estudantes se identificam mais com a dimensão poética da fotografia, e outros, com a dimensão mais documental.

 

 

“As imagens que escolhi para compor este trabalho tem relação com o corpo no espaço. Uma das coisas que mais me chamou atenção no centro da cidade de São Paulo é a quantidade de moradores de rua em situação de miséria. Por isto decidi escolher estas cinco fotos. Na minha visita ao centro, pude perceber que tenho mais facilidade em fotografar imagens com caráter poético do que documental. Particularmente eu gosto muito das duas fotos de pés, pois acho uma forte representação da situação em que vivem estas pessoas (imagens 3 e 5). Estas fotos foram tiradas no Largo do Paissandu, que, durante a minha visita, estava lotado de moradores de rua.” - João Freire Gibran, estudante do 8º ano C.

O olhar do viajante – em Paraty

A última sessão de fotografia ocorre em Paraty. Durante o trabalho de campo, os estudantes são orientados a carregar consigo as ferramentas do artista viajante, no caso, a máquina fotográfica, para, a qualquer momento, poder clicar os momentos que consideram importante registrar.

Diferente do flâner, o olhar do viajante carrega maior carga documental. Por esta razão, durante todo o trabalho a arte e a história estão articuladas.

“A produção dos artistas viajantes está diretamente ligada ao ato de viajar; os registros que realizam em desenho e fotografia apresentam vocação documental, acompanham os deslocamentos no espaço, descobertas de paisagens e tipos humanos”. Caminhar na cidade, manusear mapas, buscar os patrimônios históricos, conversar e entrevistar moradores, fotografar e desenhar, para conhecer a história do Brasil, a própria história: questão que toca na identidade.

Em última instância, propor um trabalho com fotografia nos dias de hoje vai além do mergulho na linguagem. Podemos dizer que, no contexto do projeto, o objetivo é conhecer sobre fotografia, mas, na dimensão da formação pessoal, é transformar os modos de olhar.

Para ver os alunos do oitavo ano atuando durante o trabalho de campo em Paraty, clique aqui.