Conversa literária com Milton Hatoum

11_09_2013

Por Aline Evangelista Martins

Há muito tempo, o primeiro trimestre do 8 o ano é marcado pela leitura de Capitães da Areia, de Jorge Amado. Ao longo do trabalho com esse título, os alunos pouco a pouco se aproximam das histórias de vida daqueles meninos baianos, conhecem seus conflitos, seus anseios, seus medos, enfim, mergulham em um mundo muito diferente daquele em que vivem (outra cidade, outra época, outra condição socioeconômica), e, ao mesmo tempo, muito parecido (marcado por amizades,  descobertas, vida em grupo, conquistas, decepções...). As distâncias de tempo e espaço vão se diluindo aos poucos, a cada sessão de leitura,  à medida que, por um lado,  o que é estranho vai se tornando  conhecido e, por outro, o que é conhecido vai revelando sua complexidade.

Curiosamente, essa leitura tão especial para o 8o ano foi um dos primeiros temas da conversa com o escritor Milton Hatoum, que esteve conosco dia 23.08, para uma discussão sobre o livro de contos A cidade ilhada, lido pelos alunos do 8o. Depois de se apresentar e de comentar brevemente sua trajetória como escritor, Hatoum comentou algumas de suas leituras marcantes, inclusive Capitães da Areia. A simples menção do título de um livro tão querido logo gerou um intenso burburinho! Sensível à resposta afetiva da plateia, o escritor comentou a força desse clássico:

Vocês veem o que é o poder da literatura. Um jovem de 13 anos de Manaus, em 1975, leu e apreciou um livro que vocês estão apreciando. Isso porque a literatura, quando é boa, atravessa, cruza o tempo e é lida por várias gerações.  

Esse foi o tom da conversa: antes de o escritor conversar com leitores, tínhamos um leitor conversando com leitores. E, evidentemente, havia muito que compartilhar: leituras marcantes, os desafios da vida de escritor, os romances, os contos rasgados e jogados fora, os que sobreviveram, os favoritos, os esquecidos e, claro, os publicados em A cidade ilhada. Havia o desejo de conversar sobre o prazer dessa leitura e sobre as dúvidas que ela provocou. Como surgiu a  ideia para determinado conto? Como foram criados os nomes das personagens? Parecia uma boa oportunidade para buscar o fechamento para situações abertas nos contos. Mas será que o autor tem todas essas respostas? Vejamos um trecho da conversa:

Quais eram as intenções da Harriet ao enviar as cartas para o Lavedan? Por que ela faz isso?

Ah…O que você acha? Eu escondi as minhas intenções, mas o leitor pode imaginar. Eu peço uma cumplicidade ao leitor. Pode ser que ela queira fazer ciúme, pode ser ela queira esconder alguma coisa dele, há várias  possibilidades. Elas estão ocultas porque o conto pede isso. Na literatura você não entrega tudo ao leitor. Há coisas que você não conta, há coisas que você não quer contar.

Nesse momento, a conversa entre escritor e leitor assumiu outra dimensão: escritor experiente falando a jovens escritores. Afinal, os alunos estão escrevendo contos e vivenciando o desafio de decidir o que vai ser revelado e o que vai ficar sugerido. Além de contribuir bastante com a reflexão sobre escrita, essa fala de Milton Hatoum autorizou os leitores a arriscar suas próprias interpretações, sem tentar desvendar “o que o autor quis dizer”, ao mesmo tempo em que os alertou sobre o papel ativo que desempenham no ato da leitura. Se, por um lado, essa responsabilidade coloca os jovens leitores frente a frente com uma boa dose de desafio, por outro ela também ensina uma lição fundamental: o prazer em ler nem sempre precisa estar atrelado à fruição imediata, mas pode decorrer também do esforço e da superação. Sendo assim, nós não podemos formar leitores prometendo sempre a facilidade, o imediatismo, a superficialidade. Os seguintes depoimentos dos alunos deixam entrever que eles estão de acordo com essas ideias. Quando, ao final do trimestre, pedimos que expressassem suas opiniões sobre a experiência de ler A cidade ilhada, obtivemos respostas como:

“No início, eu não estava gostando do livro. Então lemos Um Oriental da Vastidão e comecei a me interessar. E quando lemos Bárbara no Inverno, eu me apaixonei. É o melhor conto do livro, o melhor conto da vida. O jeito implícito que ele escreve, os personagens fortes, conseguimos entender a cabeça da Bárbara sem que tudo seja dito. O conto é muito bom, eu amei. Ponto final.”

“Um aspecto positivo da minha experiência com o livro "A Cidade Ilhada" foi que, apesar de ter algumas dificuldades para entender os contos por causa da linguagem e da forma como Milton Hatoum escreve as coisas, deixando coisas a entender pelo leitor, eu adorei os contos dos livros e agora eu acho que vai ser mais fácil ler um livro como esse.”

“O livro tem uma linguagem difícil que enriquece o vocabulário do leitor, tem suas dificuldades pelos pontos implícitos, traz contextos e personagens diferentes com características fortes e interessantes... Acho um ótimo livro, pois todos os pontos citados acima fortalecem o aluno para a escrita do trimestre.”

“Eu considero "A cidade Ilhada" uma boa escolha, porque é um livro que desafia o leitor por ser um pouco difícil, e ele tem ótimos contos, que ajudaram a nossa classe a ter facilidade e fazer contos de boa qualidade, com os recursos discutidos, como deixar algumas coisas para o leitor deduzir, surpreender o leitor e criar personagens com que o leitor se identifique, entre outras coisas.”

Parece que Milton Hatoum e os alunos do 8o estão de acordo! E, para concluir o encontro, o escritor, sem saber, abriu as portas do 3o trimestre. A conversa terminou com uma discussão sobre ética:

O romance não é um jogo entre o bem e o mal. O romance trabalha com as complexidades do ser humano. Às vezes o que é do bem se transforma em algo mau, contra a vontade da pessoa. E às vezes o que é cruel, o que é terrível, pode assumir outro caráter.

E ele nem poderia imaginar que, poucos dias depois, aqueles leitores estariam às voltas com Ética para meu filho, de Fernando Savater, o filósofo espanhol que conduzirá, magistralmente, uma discussão profunda sobre a complexidade do ser humano. Será um privilégio resgatar momentos tão especiais dessa conversa ao longo da nossa próxima leitura!