A força da escrita

Escrever para ler melhor, ler para escrever melhor: as interfaces de uma concepção de ensino de língua

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Produção de conto a partir de uma fotografia – Projeto de 8º ano

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Por Aline Evangelista Martins

Houve um tempo em que escrever na escola era uma coisa, escrever fora da escola era outra. Fora da escola se escrevia para participar da vida cidadã e de situações sociais e artísticas. Na escola, escrevia-se para aprender a escrever.

Há cerca de trinta anos, pesquisadores da área da didática da língua passaram a problematizar a situação e a apontar caminhos decisivos para a mudança desse quadro, de modo que tem ficado cada vez mais evidente que as propostas de escrita que são feitas na escola devem preservar, tanto quanto possível, as características que elas têm fora dela.

Essa perspectiva coloca as práticas de linguagem no centro do projeto pedagógico, o que implica considerar o valor da escrita para a participação cidadã, para a atuação na vida acadêmica e para a criação artística. Essa forma de entender o trabalho com a escrita impõe muitos desafios: os “textos da vida real” são complexos, a produção deles demanda muita leitura, pesquisa, tempo e disposição para revisão.

O trabalho é exigente e requer investimento, mas todo o esforço se justifica diante das conquistas que observamos. Tomemos como exemplo o Projeto Revista, do 7º ano. Depois de explorar muitas revistas eletrônicas e de pensar sobre o papel que esses veículos cumprem nos dias de hoje, os alunos vivem o desafio de montar uma revista: definem o público leitor, pensam nas editorias, participam da decisão sobre o layout, escolhem o nome e começam a aventura como jornalistas!

Um dos primeiros grandes desafios a vencer é planejar, executar e editar uma entrevista coletiva. Cada classe escolhe seu entrevistado, e, coletivamente, os alunos pensam sobre o objetivo da entrevista, sobre o que o leitor da revista espera de um texto publicado ali, sobre a forma de aproveitar ao máximo a conversa com o entrevistado para oferecer informações interessantes e relevantes para os leitores. A preparação também envolve uma reflexão profunda sobre as responsabilidades implicadas em trabalhar com a palavra do outro: como interagir, como conversar, como gravar, como recuperar tudo o que foi dito. E, mais que isso: como trabalhar com material bruto e editá-lo para uma versão escrita da entrevista? Como editar a fala, respeitando tanto o conteúdo, quanto as características de estilo que marcam o discurso do entrevistado?  Como  transpor para a linguagem escrita um texto que foi produzido oralmente?

Para realizar esse trabalho de edição, a entrevista é transcrita e cada fala é cuidadosamente editada, para se adequar ao padrão escrito da língua.

Entra aí um estudo interessante sobre sintaxe: não a abordagem meramente classificatória, que se limita a descrever funções sintáticas e convidar o aluno a identificar e classificar termos da oração, mas um estudo que propõe comparar  a sintaxe da língua falada e a da língua escrita e usar esse conhecimento para resolver problemas que a escrita coloca.

Vejamos o seguinte exemplo:

Transcrição do texto que foi falado pelo entrevistado:

Na época era mais fácil. Era mais fácil tocar baixo e porque, assim, na turma já tinha o baterista, já tinha o guitarrista, já tinha o tecladista...”,

Diante de desafio de transformar esse texto que foi falado em um texto escrito, os alunos precisam pensar sobre a organização sintática mais conveniente: as repetições próprias da língua falada não devem ser preservadas na escrita. Sendo assim, cabe pensar sobre o que deve ser mantido e o que pode ser eliminado, sem alterar o conteúdo da declaração. A decisão implica uma reflexão sintática: qual será o sujeito? Qual será o  predicado? Que informações deve haver nesses termos? Qual é a ordem mais conveniente para  disposição deles na oração? Com pontuar? A sistematização desses conteúdos, contextualizada no trabalho de edição, amplia a consciência linguística e oportuniza que o desafio seja superado.

Observemos a seguir o resultado da edição:

Na época era mais fácil tocar baixo, e na turma já havia o baterista, já tinha o guitarrista, o tecladista (…)

As repetições foram eliminadas, bem como alguns termos que marcam a oralidade e que não são próprios da escrita; o texto ficou mais enxuto e adequado ao gênero. Ao mesmo tempo, conhecimentos sobre a estrutura das orações foram sistematizados.

Esse exemplo permite que observemos muitas características que marcam a forma como entendemos o trabalho com as práticas de linguagem: o esforço de preparar uma boa entrevista coletiva implica muitos procedimentos: ter tudo em ordem para receber o convidado, saber muito sobre ele,  ter boas perguntas preparadas e ter muita clareza sobre a importância de oferecer informações consistentes e interessantes para os leitores. Depois da entrevista, destaca-se o compromisso com a edição e com o tratamento que é dado à palavra do entrevistado. O tempo todo estão em jogo três instâncias: aprendizagens linguísticas, respeito ao entrevistado e respeito ao leitor.

Cabe ressaltar, ainda, que esse processo, embora voltado para a escrita, também incide muito sobre as práticas de leitura e sobre a preparação para a participação cidadã. Afinal, os alunos saem dessa situação com muitos elementos para analisar as entrevistas que leem. Assim como se preocupam com a qualidade da informação, esperam que os meios de comunicação se preocupem em oferecer a eles informação de qualidade. Assim como consideram os leitores o tempo todo, esperam que sejam considerados, enquanto leitores.

Como alerta Emilia Ferreiro, pesquisadora que sempre nos inspira e nos aponta caminhos, o esforço de colocar a própria palavra por escrito  contribui decisivamente para que os alunos possam “compreender melhor a estrutura, a força elocutória e a beleza dos textos que outros produziram”.

Assim entendemos um projeto de ensino e aprendizagem pautado nas práticas de linguagem. Assim entendemos a força da escrita na formação dos jovens. Na Escola da Vila, os princípios que foram descritos aqui para o Projeto Revista estão presentes em todas as propostas de ensino da leitura e da escrita ao longo da escolaridade, dando suporte a essa construção de longo prazo, tão importante para a vida acadêmica e cidadã.

Como citamos aqui o trabalho dos jovens jornalistas da Revista Explosão, aproveitamos para convidá-los a apreciar o resultado do trabalho árduo e marcado pelo envolvimento e pela seriedade dos alunos e dos professores do 7º ano. Clique aqui e acesse as entrevistas coletivas dos 7ºs A, B, C e D, em duas versões: audiovisual e escrita.

Boa leitura!