O ensino e a aprendizagem do “ofício” das humanidades: enfrentar e questionar o inescapável

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Alunos do 3º ano do Ensino Médio no Congresso Nacional

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Equipe de Ciências Humanas

(Esse texto foi produzido pela equipe de Ciências Humanas do Ensino Médio, mas foi discutido e teve a contribuição da equipe do Ensino Fundamental. Tal processo desencadeou (mais) uma série de discussões e reflexões que continuam.) 

 

É sobre o objeto que a caracteriza e a define que, primeiramente, recai a análise e a reflexão da equipe de Ciências Humanas da Escola da Vila. Ou seja, é a partir de um pressuposto recorrentemente analisado e revisto, sem perder de vista a importância das divergências e diferenças nascidas no interior da equipe, que se define o projeto de ensino das humanidades.

 

Dessa forma, como uma compreensão compartilhada, entendemos que cabe às Ciências Humanas não o estudo de um conjunto de fatos exteriores aos homens, ou seja, o estudo de um mundo sobre o qual recai sua ação. Mas justamente o contrário: a análise decorre da interpretação da própria ação humana, de sua estrutura, das aspirações que a animam e das alterações que sofre. Sendo assim, entendendo que os alunos não são apenas objeto, mas agentes sociais em formação, as disciplinas que compõem o corpus das assim chamadas Ciências Humanas na Escola da Vila detêm-se sobre o processo de produção espacial, histórica e social (em suas dimensões política, econômica e estética) da realidade e do processo de constituição contraditória da sociedade.

 

Diante disso, torna-se tarefa do professor de Ciências Humanas auxiliar em uma tomada de consciência dos alunos, mediando ações que possibilitem a construção de referenciais para a compreensão da totalidade dos processos e fenômenos, partindo das especificidades de cada disciplina, mas sempre tendo como horizonte uma tomada de consciência sobre a totalidade. Pois, sendo a consciência um aspecto real, mas parcial, da atividade humana, o ensino de Ciências Humanas não deve se limitar apenas aos fenômenos aparentes, devendo vincular as intenções conscientes dos agentes da História à significação objetiva de seu comportamento e de suas ações.

 

Sendo assim, sem perder de vista os conteúdos tradicionalmente cobrados nos vestibulares, os currículos das disciplinas que compõem a área são definidos a partir do compromisso em não deixar escapar aquilo que se impõe: a dinâmica da sociedade. Conhecimentos Históricos e Geográficos, Geografia, Filosofia, História, História da Arte, além dos cursos de Política e Sociedade e Projeto Integrado, são disciplinas que, na Escola da Vila, definem seus objetivos e sua própria identidade na articulação entre a produção dos conhecimentos tradicionalmente validados e o olhar atento, analítico e propositivo àquilo que acontece além dos muros da escola.

 

Ou seja, por exemplo, se pretendemos ensinar os movimentos sociais ocorridos no processo de urbanização no Brasil no século XIX, não nos escapam as manifestações de 2013, os rolezinhos, a discussão sobre as cotas e as intervenções artísticas que redefinem as relações entre público e privado em um processo de construção de uma república que ainda não está pronta...

 

Longe de ser um curso meramente ilustrativo, é nessa ‘linha de fronteira’ – que acreditamos, inescapável – entre (a retomada do) passado e (a ação no) presente e a construção do futuro que definimos conteúdos, objetivos procedimentais e atitudinais nas disciplinas de Ciências Humanas na Escola da Vila, tendo como referência o desenvolvimento da crítica, da autonomia, da alteridade e da responsabilidade (diante do grupo).

 

Na Escola da Vila, diversas são as ações empreendidas pelas disciplinas das Ciências Humanas na busca por ajudar os alunos a construir esses referenciais. Neste texto, vamos abordar três das estratégias desenvolvidas: o trabalho com a leitura de textos complexos, o trabalho de campo e o trabalho com seminários. Acreditamos que essas sejam ações fundamentais não para o ensino de um pensamento crítico (expressão que, de tão repetida, por vezes se torna vazia de sentido), mas para um ensino que oriente o aluno a construir seu próprio conhecimento, criticamente.

 

Uma das marcas do projeto pedagógico desenvolvido pela área de Ciências Humanas da Escola da Vila é o trabalho com a leitura de textos complexos. Por vezes somos questionados acerca da pertinência desse trabalho. Seriam os livros e textos adotados pela escola adequados para a faixa etária? Nós, professores da área de Ciências Humanas, temos certeza de que são. Essa certeza se sustenta em dois pilares. O primeiro diz respeito à convicção de que o aporte teórico dos cursos deva levar os alunos a entrar em contato com o que há de mais consistente na produção conceitual da área. O segundo pilar diz respeito às estratégias pedagógicas desenvolvidas no sentido de formar leitores capazes de enfrentar os desafios que se colocam. Não se trata, portanto, de simplesmente apresentar textos complexos aos alunos, mas, sobretudo, de ensiná-los a ler esse material, buscando compreender a construção e a validação (ou não) de argumentos em determinados contextos. Dessa forma, não apenas os conteúdos, mas também a própria dinâmica de construção de determinados conhecimentos (específicos) se torna objeto de ensino.

 

Outra marca da área de humanidades da escola é a valorização do trabalho de campo. Para a Escola da Vila, a ida a campo não corresponde a uma experiência de mera ilustração dos conteúdos trabalhados em classe. Não tomamos o trabalho de campo como uma experiência em que os estudantes são levados a reproduzir procedimentos de investigação repetitivos e mecanizados, com o propósito último de responder as questões que já se encontravam plenamente resolvidas no espaço da escola. Para nós, o campo é um momento de construção de conhecimento. Fundamentais para esse processo de construção são as relações formadas em novos contextos. É na vivência de experiências singulares que os alunos podem operacionalizar de forma autônoma o repertório conceitual visto em aula, articulando, dessa forma, a teoria e a prática. Tal articulação é estruturada por meio do trabalho com procedimentos (técnicas de entrevista, pesquisa, etc.) capazes de ajudar os estudantes a construir uma compreensão mais complexa acerca dos fenômenos investigados. No ‘momento’ do campo, portanto, acreditamos que o objeto das humanidades não deve ser apenas ‘visto’, mas analisado e (re)construído de forma crítica pelos alunos.

 

Não há como discorrer sobre o trabalho desenvolvido pela área sem abordar, ainda, os seminários. As exposições orais são situações frequentemente vivenciadas pelos alunos nas diferentes disciplinas de Ciências Humanas. Nessas situações, os estudantes são convidados a ocupar momentaneamente o papel de “especialistas” frente aos colegas. Para que esse papel possa ser bem desempenhado, é necessário um trabalho de preparação que envolve pesquisa bibliográfica, documental e/ou de campo, além de procedimentos fundamentais, como a criação de questões norteadoras ou hipóteses, mediação da relação entre os que estão apresentando e os que estão assistindo (um dos esforços é o de pensar não só nos procedimentos daquele que apresenta, como também daqueles que assistem um seminário), até chegar, nos anos finais da escolaridade, à escolha autônoma de um recorte temático, etc.. Tão importante quanto as intervenções didáticas ligadas aos conteúdos conceituais apresentados nos seminário, é o trabalho pedagógico desenvolvido para ajudar os alunos a organizar e a realizar exposições claras e consistentes. Nesse sentido, buscamos construir um contexto em que os debates vão além da mera opinião, mas sim em argumentos construídos individualmente e discutidos em situações coletivas.

 

Enfim, uma das preocupações centrais das humanidades é que o chamado “ofício” de cada uma das áreas, ou seja, o conjunto de procedimentos e técnicas específicas trabalhadas por estas, enfrentando nosso objeto de análise em toda a sua dinâmica e contradições, seja incorporado ao processo de aprendizagem. Na Escola da Vila, o aluno aprende ciências sociais exercitando o ofício do cientista social. É na prática desse ofício que ele pode se apropriar das ferramentas necessárias para desnaturalizar os fenômenos sociais, transformando-os em objeto de reflexão e análise.

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