Forte na Matemática

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Por Gislaine Rasi 

A aprendizagem da matemática, assim como de qualquer outra disciplina, está vinculada ao conjunto de experiências que o aluno vivencia ao longo da sua escolaridade. Ou seja, ao aprenderem matemática de uma determinada forma, os alunos caracterizam, paralelamente, o modo de construir conhecimento nessa área.

Consideremos o ensino usual de matemática. Nele, normalmente, é apresentado um dado conteúdo, acompanhado de problemas e exemplos cuja resolução é explicada, passo a passo, pelo professor. Em seguida, é proposta aos alunos uma série de problemas/exercícios com pequenas variações em relação ao modelo oferecido previamente. Evidencia-se, nesse processo, um protagonismo maior por parte do professor do que do aluno. Para este último, reserva-se a tarefa de aplicar algo pensado por outros, que lhes foi apresentado de forma acabada, retirando da atividade parte significativa do seu sentido.

Por que não trabalhamos dessa forma? Como entendemos o papel do professor e do aluno nas situações de ensino/aprendizagem de matemática? 

A princípio, entendemos o fazer matemático de uma forma mais ampla.

“Fazer matemática é mais do que chegar ao resultado correto, é investigar e explorar diferentes possibilidades, criar modelos e planejar percursos, antecipar e estimar resultados, olhar sob diferentes pontos de vista, lidar com acertos e erros, saber registrar e comunicar para o debate das ideias.” (Como instigar a perseverança dos alunos na resolução de problemas matemáticos?)

Desse modo, consideramos que forma também é conteúdo. Conceber a atividade matemática como uma atividade de produção é um dos princípios do nosso trabalho. Pensamos que aprender matemática é mais do que aprender conceitos específicos e técnicas de resolução. É aprender a construir opiniões e levantar conjecturas acerca das situações, enfrentando novos problemas sem a garantia de um caminho a seguir; é buscar na memória o que será pertinente utilizar naquela situação, reconhecendo sua validade e suas limitações; é errar, voltar ao enunciado diversas vezes, persistir ou desistir de certos percursos; é trocar ideias e saber explicar o seu raciocínio, generalizando procedimentos e conclusões; é utilizar uma linguagem específica e ler informações em diferentes representações.

Na Escola da Vila, todos esses “fazeres” também são vistos como conteúdos matemáticos e tornam, do nosso ponto de vista, nosso ensino forte.

Forte por criar espaços que desafiam os nossos alunos a irem além do resultado, seja para reconhecer novas estratégias ou incorporar novos conhecimentos e relações. Forte por promover a atividade intelectual do aluno e a socialização das ideias. Forte por democratizar o fazer matemático, tornando essa disciplina mais acessível a todos, atuando, de forma fundamental na construção de uma maior autonomia dos alunos para que continuem aprendendo.

Assim, nossas metas de aprendizagem incluem diferentes estratégias para a resolução de problemas intra e extra-matemáticos; que busquem e comparem diferentes soluções para uma mesma situação; que justifiquem e validem os raciocínios, e saibam argumentar; que estudem os objetos matemáticos e suas propriedades; que assumam atitudes de disposição e compromisso para aprender e compartilhar.

Com o intuito de favorecer tais resultados de aprendizagem, procuramos trazer para as aulas de matemática um trabalho que conserve as principais características de uma comunidade matemática. Do mesmo modo que não se aprende a ler um texto difícil lendo um texto fácil, não se aprende a fazer todos esses procedimentos necessários a uma autonomia intelectual na área de matemática trilhando apenas caminhos já traçados pelo professor. Por isso, procuramos desafiar nossos alunos à resolução de problemas complexos e à análise das relações entre os objetos matemáticos.

Consideramos, dessa forma, o aluno no papel central da aprendizagem como produtor de conhecimento, e o professor como mediador e orientador desse processo, diferenciando-nos da proposta tradicional de ensino.

Por esse motivo, é muito comum que alunos advindos de outras escolas, com diferentes práticas, precisem reavaliar o seu papel nas aulas de matemática, assumindo maior responsabilidade, visto que o professor não explicará a ele tudo primeiro para depois pedir que aplique. Ele terá de construir um caminho “novo“ a partir do que sabe, e disponibilizar suas ideias para participar de um processo reflexivo e coletivo de construção.

Mas o professor não explica, então? Tudo fica a cargo do aluno?

O professor explica, mas em um terreno fértil, já pensado e questionado pelos alunos. Nesse momento, o professor evoca e retoma conteúdos anteriores e os relaciona com os novos saberes, apresentando o objeto matemático tal como a ciência o convenciona.

Tomemos como exemplo o famoso caso da regra de três, que normalmente é ensinada apenas como multiplicar em cruz. Antes dos alunos automatizarem essa regra, trabalhamos com a ideia de equivalência entre duas expressões e propomos que busquem formas de resolução a partir do que sabem sobre a proporcionalidade e as relações entre as operações. Ao resolver
não se trata de "passar o cinco ou o dois para cá ou para lá". Nesse sentido, ao multiplicarmos o 3x por 2, para manter a equivalência, foi necessário multiplicar o x+1 também por 2. Mas como essa etapa "desaparece" na técnica, já que multiplicar por 2 e dividir por 2 não altera o valor de x+ 1, ela não é explicitada no ensino, fazendo com que se perca o sentido matemático da técnica. Essa forma mais mecânica de tratar a técnica dá a ilusão de algo que funciona, não se sabe por que, e, portanto, só deve ser memorizado e não compreendido.

Ensinar favorecendo processos de compreensão toma mais tempo didático, mas garante um trabalho intelectual mais profundo por parte dos alunos, vinculado ao modo como a matemática se constrói, apoiada em propriedades e não em coincidências, resultando em uma aprendizagem mais relacionada e duradoura.

Enfim, procuramos, ao longo do texto, destacar aspectos centrais do nosso fazer matemático mostrando a nossa escolha por uma matemática mais compreensiva, forte e ampla. Para finalizar, apresento- lhes um trecho do texto do Prof. Dr. Guy Brousseau (pesquisador educação matemática, IREM Bordeaux) – que fundamenta nosso trabalho.

     “Não se trata somente de ensinar rudimentos de uma técnica, nem sequer os fundamentos de uma cultura científica: as matemáticas neste nível (se refere à escolaridade obrigatória) são o primeiro domínio - e o mais importante – em que as crianças podem aprender os rudimentos da gestão individual e social da verdade. Aprendem nele – ou deveriam aprender nele – não só os fundamentos de sua atividade cognitiva, mas também as regras sociais do debate e a tomada de decisões pertinente: como convencer respeitando o interlocutor; como se deixar convencer contra seu desejo ou interesse; como renunciar à autoridade, à sedução, à retórica, à forma, para compartilhar o que será uma verdade comum... Sou dos que pensam que a educação matemática, e em particular a educação matemática da qual acabo de falar, é necessária para a cultura de uma sociedade que quer ser uma democracia.” (Brousseau, Guy (1986) “Fundamentos y métodos de la didáctica de la matemática” Tradução e edição I. M. A. F. Córdoba 1993.)