Escrever em provas

15_4_2016

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Por Fermín Damirdjian

"Que bom idioma o meu, que boa língua herdamos dos torvos conquistadores... Andavam a passos largos pelas tremendas cordilheiras, pelas Américas encrespadas, em busca de batatas, chouriços, feijões, tabaco negro, ouro, milho, ovos fritos, com aquele voraz apetite que nunca mais se viu no mundo... Tudo engoliam, juntamente com as religiões, pirâmides, tribos, idolatrias iguais às que traziam em seus alforjes... Por onde passavam deixavam a terra arrasada... Mas os bárbaros deixavam das botas, das barbas, dos elmos, das ferraduras, como pedrinhas, as palavras luminosas que ficaram aqui, resplandecentes... o idioma.
Saímos perdendo... 
Saímos ganhando... Eles levaram o ouro e nos deixaram o ouro... Levaram tudo e deixaram-nos tudo... Deixaram-nos as palavras."

Pablo Neruda, “Confesso que vivi” 

Neste trecho de sua autobiografia, Pablo Neruda descreve lindamente aquilo que praticamos em nossa rotina: reproduzimos, modificamos e mantemos vivos os fonemas herdados da mãe, da família, da música, das leituras, da cultura enfim. A palavra, além de utilizada desde a tenra infância, permeia vivências diversas, raramente se ausenta. Dificilmente a psicologia – ou, ao menos, a psicanálise – conseguiria erigir um saber sem discorrer sobre as marcas deixadas por essas representações gráficas e fonéticas no universo social e subjetivo – justamente porque são o mais perfeito amálgama entre essas dimensões.

Na escola, não é diferente. Representação plena de nossa cultura e sua diversidade, essa instituição utiliza vídeos, trabalhos de campo, vivências coletivas e individuais, sem nunca abandonar a palavra. Ora como símbolo de confiança entre alunos e educadores, ora como recurso elementar em aulas dialogadas ou expositivas, o formato escolar faz uso direto desse saber que confere a nossa humanidade.

Há, no entanto, uma estranha frase que emerge, em claras palavras, e que se repete ao longo do tempo, quando um aluno não encontra em seu desempenho escolar uma correspondência com aquilo que ele entende por dominar um conteúdo: "Não é que eu não saiba a matéria. Eu estou sabendo, mas na hora de botar no papel, eu não consigo". Essa situação merece uma análise.

Tempos atrás, li um artigo na revista Nova Escola que contava ser perfeitamente possível que alguém soubesse algo, mas não conseguisse colocá-lo em palavras. Por grande infortúnio deste que escreve, guardei o artigo em algum lugar bem separado, longe dos papéis que vivem se embaralhando pelos ventos cotidianos que varrem a paisagem por tormentas laborais, familiares e demais ataques à tentativa de pôr ordem na vida. Como dizia a personagem Mafalda: "O urgente não deixa tempo para o importante". E assim foi que, mais cedo ou mais tarde, perdi esse artigo diante de alguma urgência, e nunca mais o encontrei. Fico devendo-o ao leitor.

Nesse bendito texto, o autor argumentava que há vivências que não conseguimos descrever em palavras, mas que temos clareza sobre o que sentimos naquelas situações. Um filme, dizia ele, pode até ser descrito em palavras, mas dificilmente essa descrição pode transmitir o que o espectador viveu ao assistir a ele. Eu ainda completaria esse argumento com o exemplo de um sonho. É comum sentirmos que, ao contar um sonho ainda recente e nítido em nossa memória, ele se torna raso com as palavras que encontramos para transformá-lo em um relato. Sonhos costumam ter uma atmosfera muito particular, com muitas indefinições e ambivalências. Nada disso impede que tenhamos clareza sobre ele. No entanto, relatar um sonho com fidelidade é uma tarefa bastante árdua. Outro exemplo da dificuldade em colocar coisas em palavras pode ocorrer quando alguém conhece bem o seu ofício, mas tem grande dificuldade em falar sobre ele. Uma pessoa pode saber arar a terra muito bem, ou consertar o motor de um carro, e não conseguir explicar um procedimento típico de seu ofício, sem que isso não signifique que ele ignore seus atributos nesse quesito.

É possível que isso também ocorra nas atividades escolares? Não é raro que, quando um pai vai buscar seu filho no retorno de um trabalho de campo, já no carro surgir a pergunta: "Como foi?". Qual a resposta mais frequente? O viajante recém-chegado não consegue avançar muito além do "Legal!". Eventualmente, os progenitores conseguem ser agraciados com um "Foi muito show." Os mais verborrágicos avançam para um "Você não tem noção". E a verdade é que não se poderia esperar muita coisa, pois não podemos esquecer que a pergunta também é muito genérica, certo? O resultado da viagem chega aos poucos, em palavras que vão se deixando cair nos dias e nas semanas subsequentes, no almoço de família, no elevador, parando no supermercado e, de, acordo com nosso estilo de vida, em outras viagens de carro.

É preciso certo tempo de elaboração para ir nomeando aquela confusão de vivências. Naquele trajeto entre a escola e a sua casa, os sabores da convivência com os amigos, os lugares visitados no trabalho de campo, os conceitos revistos pelo professor e as percepções dos próprios alunos ainda se encontram todos misturados. Porém, ao longo do tempo e com muito auxílio da escola, os alunos vão decifrando o que ocorreu naqueles dias. Há um trabalho proposital em que se volta a nomear e a conceitualizar tudo o que ali fora visto.

Saindo agora desse exemplo, e partindo para um texto que é apresentado em sala de aula, com uma leitura cuidadosa e lenta comandada pelo professor, ou de uma experiência em laboratório para a qual os alunos foram preparados ao longo de algumas aulas, vamos nos distanciando ainda mais da dificuldade de transpor para o papel aquilo que concebemos simplesmente como uma vivência de âmbito subjetivo. Há um trabalho verbal para decifrar textos, filmes, vivências ou exposições teóricas de toda sorte. No momento de uma prova, o que se pede ao aluno é que ele reproduza, com as devidas articulação e profundidade, conteúdos que foram introduzidos e revistos não como uma avalanche onírica, mas sim com certa parcimônia pedagógica.

Diante de uma prova trimestral, o aluno precisa se submeter a uma estrutura que o obriga a oferecer diversos recortes sobre um determinado assunto. Por isso ele precisa também se restringir ao espaço que ali está determinado para a resposta, e não mais. Há casos em que o aluno quer ultrapassar aquele espaço de escrita. Mas para esse excedente, provavelmente haverá outra pergunta, e assim vão sendo contemplados os conteúdos dados no trimestre. Estes, a rigor, são mais do que fatores a serem reproduzidos. O conjunto de perguntas, se bem respondidas, contempla a totalidade daquilo que os professores querem que os alunos de fato saibam. E esse saber passa por conseguir redigir. Nada daquilo foi exposto por outra via que não tenha sido pela palavra. Mesmo com trabalhos de campo, vídeos, músicas, seminários audiovisuais, as análises foram feitas por textos e por aulas, expositivas e dialogadas. Forma e conteúdo, assim, são absolutamente indissociáveis.

Ao contrário de um sonho, do conserto de um carro ou de arar a terra, a atividade acadêmica se constitui de reflexões e experiências que passam pela palavra. A didática se ocupa de fazer com que o aluno consiga expressar por esse meio os conteúdos trabalhados. Ainda assim, um sonho, mesmo não submetido a qualquer pedagogia, não é algo indescritível, embora isso seja para poucos. Assim como pode ser contada toda uma vida em uma única e primorosa obra. É o que fazem poetas e grandes escritores. Mas isso já é outra história.