Precisamos falar sobre isso

Uma pequena reflexão sobre um difícil tema

Por Susane Lancman, coordenação do Ensino Médio

Como nos posicionar diante de tragédias públicas envolvendo jovens?

Esse foi o convite que recebemos das mais variadas formas e dos mais variados sujeitos: alunos do Ensino Médio adentrando a sala da coordenação pedagógica e da orientação educacional com interesse legítimo de conversar, pais preocupados ligando e enviando e-mail, professores em todos os espaços da Escola discutindo o contexto social e escolar, amigos e conhecidos em restaurante e supermercado querendo obter informações que explicassem a relação entre jovens e suicídio.

Por infeliz coincidência, já dada a seriedade e gravidade das notícias, eu estava lendo um livro cujo título antecipa o peso do enredo: “O pai da menina morta”. O autor, Tiago Ferro, inicia a escrita do livro logo após sua filha ter morrido, e com uma linguagem arrojada e uma forma textual pouco convencional nos faz conhecer a dor dilacerante de perder uma filha. Sua escrita é visceral. Quase podemos sentir a dor aguda em nossas vísceras. Quase vemos as lágrimas e o sangue escorrendo pelas páginas.

“Você deixou sua filha morrer. Que espécie de pai você é? Como ainda tem coragem de exibir a sua cara por aí? Como tem a petulância de comer, dormir, sorrir, trepar, respirar? Como? Responda!” Assim, escreve Ferro em um dos questionamentos do protagonista da história. A culpa pela morte da filha está presente no decorrer do texto, mas mais do que isso há a tentativa inócua de compreender a logicidade do fato. A morte não tem lógica. Menos ainda a morte de uma filha. Menos ainda a morte de uma filha de 8 anos. Menos ainda a morte de uma filha de 8 anos causada por um vírus. Menos ainda a morte de uma filha de 8 anos causada pelo vírus da gripe. Não há lógica.

O suicídio sofre do mesmo mal, sua ilogicidade. Há uma dificuldade extrema de ser compreendido, ainda mais quando se trata de jovens. Mais ainda quando se trata de jovens de classe social alta. Mais ainda quando se trata de jovens com boas famílias, boas viagens, boas escolas, bons amigos. Podemos inferir que eram jovens com boas vidas. Mas, uma boa vida não pressupõe uma vida sem agruras, tristezas, amargor, dissabor, angústia, vicissitudes, fragilidades, desequilíbrios. Se há algo democrático, como sinônimo de igualitário, nesta vida, é o sofrimento psíquico. Esse não diferencia os humanos em classe social, etnia ou credo, é universal, podendo atingir qualquer um, basta ser humano e estar vivo.

No livro, o protagonista faz listas infindáveis durante toda a narrativa tentando colocar ordem no caos. Lista de medos. Lista de títulos. Lista do que fazer. Lista do que não fazer. Lista de tratamentos. Lista de dúvidas bobas. Além disso, o protagonista busca o significado das palavras, também com a intenção de domar o caos. Significado da palavra céu. Significado da palavra cérebro. Significado da palavra miocardite. Significado da palavra clube. Mas não há lista e significado que deem conta da morte.

Como responder às demandas de posicionamento diante das tragédias?

Não há prescrição. Não há manual. Não há bula. Mas há sujeitos impactados, comovidos, sensíveis. Sujeitos capazes de analisar contextos complexos e não reduzir a dor à pressão escolar, nem à separação de pais, nem à decepção amorosa ou briga entre amigos. Sujeitos capazes de escutar. Sujeitos que sabem a importância da palavra.

Tiago Ferro buscou ajuda com Drummond, Gilberto Gil e Eric Clapton. Ele procurou seus pares que também perderam filhos. Na Escola nossa tentativa é que alunos, pais e professores sintam que têm pares, que as vozes apareçam em nossa comunidade.

Escola da Vila

No dia 5 de maio, na Folha de São Paulo, a personagem da cartunista Fabiane Langona ilustra a tentativa de fingir a felicidade, inclusive utilizando álcool. Fingir para quem? Quanto tempo de fingimento? É preciso sempre mostrar que está feliz, as redes sociais que o digam, o que é muito penoso. Sem dúvida esse pode ser um investimento muito perigoso. Talvez seja essa uma das grandes infelicidades: a necessidade de se mostrar feliz o tempo todo.

Tentar aplacar a dor com fingimentos e álcool pode ser muito danoso. A tristeza precisa aparecer na escola, no clube, nas casas, ainda mais entre os jovens que estão em processo de construção identitária. Mas não é de hoje que a tristeza e a depressão devem ser escondidas, já foi até considerado pecado grave, afinal isso demonstrava subestimação ao poder Divino que possibilitou a vida, inclusive em cemitérios judaicos era costume colocar os suicidas nas margens do cemitério por terem desprezado a vida, não mereciam a centralidade.

Escola da Vila

No mesmo dia, também no jornal Folha de São Paulo, o cartunista Caco Galhardo ilustrou o desabafo de Lili com a sua sensação de “afundamento”, e seu par parece não levá-la muito a sério, afirmando ser uma simples impressão, imaginação, um equívoco.

Tiago Ferro sabia que o que sentia não era “impressão”, talvez tenha escrito o livro como forma de ajustar a vida depois da ausência da filha, de conviver com a perda, de encontrar um novo sentido para vida. Ele precisou escrever. Nós precisamos falar sobre dor, precisamos falar sobre morte. Precisamos levar essas dores a sério. Uma gripe pode levar à miocardite. Uma tristeza à depressão. O álcool à impulsividade. A ideia não é alardear, apavorar, pelo contrário, é cuidar de nossa saúde psíquica em uma sociedade adoecida.