Educar em tempos de cisão

Escola da Vila

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Por Fermín Damirdjian, orientador educacional do Ensino Médio

A cada ano, um grupo de alunos da Vila viaja à Argentina e permanece em convivência com outros alunos de uma escola parceira, não sem antes estudar ao longo do ano as características sociais, históricas, culturais e políticas daquele país. Em grande parte das vezes, nossos alunos investigam, intrigados, as origens da grande cisão que parte o país em dois, de acordo com a orientação política de cada setor, comunidade, família ou indivíduo. Voltam sem uma resposta, mas com a dúvida mais consistente, e conseguindo pensar mais a esse respeito. Se há um país neste continente que entenda de viver cindido, esse país é a Argentina.

Neste ano, porém, algo foi diferente. Estávamos lá durante as eleições de primeiro turno no Brasil. Já na segunda-feira, os olhares que nossos alunos receberam pelos colegas da escola hermana eram de permanente assombração, quase um fascínio. Já estavam ao tanto que um candidato da extrema direita estava pleiteando a presidência do vizinho gigante e admirado. Admiração oriunda de suas praias, de sua música e de seu futebol, mas também por uma trajetória política e econômica um tanto invejável, a julgar especialmente por sua estabilidade. Em comparação à Argentina, as crises brasileiras são verdadeiras marolinhas inevitáveis ao mundo globalizado.  Assemelham-se mais a corrosões lentas e persistentes, com alguns momentos de rearranjo, do que às explosões sociais e econômicas que caracterizam a história argentina. Isso, é claro, visto a distância e com certa idealização.

Ocorre que, de uns anos para cá, com uma presidente deposta e um ex-presidente preso, os argentinos também começaram a tecer opiniões e a encontrar um terreno fértil para tomar partido a respeito dos protagonistas da disputa política no vizinho gigante. O ápice disso foi a configuração da eleição presidencial atual. Por isso o espanto e o fascínio, quase uma inveja, de como seria possível o alcance de uma conjuntura tão dramaticamente polarizada.

Se a "Macrise" argentina deixava os peronistas confirmando a desgraça já prevista que recairia sobre o país sob o comando de Mauricio Macri, para os partidários do atual presidente tudo é resultado da governante anterior, a quem se referem com apelidos depreciativos e machistas. O Brasil, porém, conseguiu superar com um golaço de fora da área essa disputa sobre a qual os argentinos certamente viam assegurada sua hegemonia desde o advento do peronismo, nos anos 50, e acirrada por intermitentes ditaduras que tentaram anulá-la, mediante métodos repressivos de dar inveja aos nazistas.

Nossos alunos, então, na segunda-feira, 8 de outubro de 2018, eram uma pérola circulando pelo Colegio de la Ciudad. E nada melhor do que convidá-los para uma roda de conversa durante a tarde, para que explicassem aos argentinos com quais jogadores, técnico e estratégia estavam conseguindo tamanha goleada.

Foi necessária uma lousa para que os representantes vilanos explicassem, com a devida parcimônia e atenção didática, como se compunha a situação em campo. A lousa, é claro, foi dividida em dois, a fim de esclarecer as características de cada protagonista. Em cada setor, um breve histórico do candidato, seus vínculos, sua história. O relato tinha sido ensaiado algumas horas antes. Afinal, é preciso municiar-se de informações mais precisas. Quando se está dentro de uma situação, toma-se como pressuposto uma série de saberes que, muitas vezes, são apenas percepções subentendidas, e antes de transmiti-las é preciso checá-las. Essa é a grande riqueza de formular um relato. Mais ainda em terra estrangeira. E mais ainda se seu público já é bem informado, como era o caso.

Intuitivamente, nossos alunos trouxeram à tona algumas bases teóricas que fazem parte de seu repertório escolar. Os quatro princípios da construção de um mito salvador, personificadas em um líder, formulados por Lená Medeiros em seu ensaio "A sacralização do profano[1]", são exemplo disso.

A discussão se desenvolveu bem, com o idioma de cada um dos nossos sendo posto à prova, na mesma medida que sua capacidade de análise. Descrever e analisar são duas propostas diferentes, que podem se diferenciar, mas nunca se descolar cirurgicamente uma da outra. É um baita exercício. Como esse jogo pode se dar para todos nós? E para adolescentes? E para as crianças?

Muitos depoimentos poderiam surgir aqui, assim como muitas análises. E poucas respostas. O que sabemos é que a atual conjuntura é marcante. Lembro-me, quando criança, de um clima tenso e escuro, na Argentina dos anos 70. Adultos sisudos, o ar denso, palavras proibidas, uma população visivelmente aterrorizada. Em espaço público, não se falava. Era tenso, portanto, andar com crianças. Em um trem lotado, certa vez, meu irmão, um permanente tagarela, perguntou em altíssimo volume: "Mamá, Videla es bueno??". Responder que sim ou que não era ganhar inimigos imediatos. Minha mãe enfiou um alfajor na boca do pirralho e saímos do trem na primeira estação que apareceu. Não havia outras respostas possíveis.

O que podemos oferecer nos dias de hoje? A situação torna-se difícil, pois as bases políticas expostas consideram pontos que, para muitos de nós, são intocáveis. Seja pelo que já foi visto em governos anteriores, seja pelo que os partidos que buscam estrear no poder executivo propõem. Como combater o que cada um entende como essencial ao país? Seria avançando sobre tudo aquilo que possa ameaçá-los, ou mostrando resistência? Propor a discussão ou fechar trincheiras? Se essas possibilidades já geram muita controvérsia entre os adultos, é preciso mostrar algum caminho para crianças, adolescentes, jovens. Não esperamos estar todos alinhados dentro disso. Pode-se estar do mesmo lado político, inclusive, mas discordar profundamente entre famílias, escolas, educadores, sobre que postura adotar e como orientar.

Em todo caso, é preciso criar espaços para pensar. Ler, discutir – e muito. O âmbito comum permite a elaboração. Assumir uma posição e ficar sozinho com ela, na atual conjuntura, seria o pior dos mundos. Sendo assim, se é possível conversar sobre isso na mesa do jantar, nas assembleias em sala de aula, no recreio, no parque, onde for, tanto melhor.

O maniqueísmo é uma ferramenta útil que brota com facilidade em momentos de crise, e crianças e adolescentes têm forte tendência a dividir o mundo em dois, ou em poucos aspectos. Em época de eleição, todo candidato assume que o melhor lado é o dele, e promove essa ideia. Sendo assim: quando os agentes políticos configuram uma situação de maniqueísmo antagônico, como oferecer a crianças e adolescentes uma compreensão do mundo que se dê pela via do pensamento, da ponderação, da análise? Não queremos parar na próxima estação com um chocolate na boca. Sugestões são bem-vindas.


[1] Publicado em "História e Religião". Lana Lage de Gama Lima et al. Rio de Janeiro, FAPERJ: Mauad. 2002.