Não existe conhecimento, nem educação, neutros

Escola da Vila

.

Por Ricardo Buzzo, professor de Ciências Humanas

A ciência, ao longo de sua história e num mesmo momento histórico, forneceu explicações diferentes para o mesmo fenômeno. No século XIX, por exemplo, os cientistas buscavam verdades absolutas sobre o mundo físico e social. Posteriormente, a própria investigação sobre o fazer científico levou os teóricos da ciência a apontar outro caminho, no qual os avanços científicos dependem dos consensos e acordos estabelecidos dentro de cada campo de conhecimento, os chamados paradigmas. Mas o que cabe à escola ensinar às crianças e adolescentes?

Ocupada da formação cidadã, não vai se dedicar a ensinar todas elas. Deve se preocupar em ensinar o princípio de que há diferentes explicações e para tal fará escolhas. Sobre a gravitação, não ensinamos que segundo Newton a explicação é uma, e segundo Einstein a explicação é outra. Mas em algum momento ensinamos que os gregos colocavam a Terra no centro do universo, e essa explicação foi superada. Não ensinamos que, por um lado, a colonização brasileira pode ser vista como uma obra de heróis portugueses, por outro como um processo de expansão econômica. Mas ensinamos que, sob uma perspectiva, a revolução francesa pode ser vista como obra de algumas lideranças políticas, sob outra, como ação de classes organizando-se para alcançar o poder. Nossos objetivos em cada momento são distintos, ancorados numa concepção de ciência e de conhecimento, bem como em estudos sérios e reconhecidos no campo científico sobre como se dá a aprendizagem da criança e do adolescente.

Nada disso entra no horizonte do projeto que agora ganha publicidade no Brasil. Em um dos mandamentos que quer fixar em cartaz pelas escolas, aponta explicitamente a obrigatoriedade de apresentar as principais versões sobre questões políticas, socioculturais e econômicas. É apenas nesses campos que está a suposta parcialidade que combatem. Diferentes teorias sobre o mundo físico ou sobre os seres vivos não parecem ter dois lados. Podemos concluir que não existam para seus autores, dado que alardeiem que há unicamente fatos objetivos e neutros a serem ensinados. Isso só reforça que seus interesses são marcadamente políticos e ideológicos, voltados à proibição da disseminação de ideias que seus defensores, sem muita substância, categorizam como “esquerda”, ignorando por completo, na estrutura do projeto de lei, a diversidade de explicações nos campos das ciências naturais (e a complexidade intrínseca ao processo de produção de conhecimento).

Apesar desse quadro, os membros desse movimento sabem muito bem o quanto há disputas também relativas ao campo das Ciências Naturais. Artigos de diversos apoiadores do movimento, muitos publicados em seu site, se colocam contrários à preservação ambiental, alguns apontam a necessidade de se ensinar o criacionismo, ou mesmo, em alguns casos mais lunáticos, a teoria de que a terra é plana (não como uma explicação superada). Mas, para isso, não lançam mão da necessidade de ensinar dois lados. Em sua concepção tacanha, não é possível haver nada além da verdade na ciência, mas ao mesmo tempo outras explicações, fundadas na religião, têm o mesmo valor do conhecimento científico. A justificativa das iniciativas que atacam as Ciências Naturais vem do entendimento de que ensinar ciências ataca as concepções morais da família, o que remonta a um obscurantismo próximo daquele que queimou Giordano Bruno.

Do nosso ponto de vista, no entanto, qualquer conhecimento produzido o será desde uma perspectiva, inclusive o modo como esse movimento enxerga o mundo. Suas propostas, para que possam existir, precisam de uma base teórica, de concepções sobre a sociedade e o conhecimento. Podemos observar que os textos do movimento transitam entre o liberalismo exacerbado que quer responsabilizar unicamente a família pela responsabilidade de ensinar a moral a seus filhos e o conservadorismo antiliberal contrário a que se ensine o respeito às diferentes orientações sexuais. O ataque à necessidade da conservação ambiental aponta para uma junção disforme de liberalismo e conservadorismo, e a família teria o direito de ensinar a seus filhos que preservar a natureza não é importante, por exemplo, sem o incômodo contraditório da escola e assunto de marcada relevância social. Nessa linha também aparece a ideia de que homossexuais são doentes e não devem ser respeitados, a despeito de manifestações científicas a respeito, como a exclusão do homossexualismo como doença, operada internacionalmente.

Mesmo a percepção que justifica o início do projeto é uma operação completamente alheia aos parâmetros científicos vigentes. Afirmam que a doutrinação ocorre de maneira generalizada nas escolas. Ocorre que a verificação da existência de tais situações não segue qualquer metodologia científica. É algo evidente, reforçado por exemplos sem nenhum trato em relação à amostragem. A criação do movimento, por Miguel Nagib, está na sua insatisfação com o professor de História da própria filha. Ora, para de uma ou algumas experiências particulares deduzir um quadro geral de uma nação, seria preciso tomar alguns cuidados, o que não é demonstrado pelo movimento. Sua prova da existência da doutrinação generalizada sempre ocorre por exemplos particulares.

Quando se diz que professor deve transmitir um conteúdo, concebe-se o conhecimento como algo dado, estável, neutro. Deve ser transmitido aos alunos. E mais, o conhecimento é algo a ser recebido, nunca construído. As informações se dividem em verdadeiras e falsas. Não têm intenções, interesses, seleção. Essa é uma concepção de conhecimento muito recorrente no século XIX nos marcos de estados autoritários e uma marcada divisão da sociedade entre os que sabem e os que não sabem. Aos que não sabiam, era dever do estado garantir os procedimentos básicos de leitura e escrita, vistos como técnica, além de procedimentos básicos de matemática e noções de história e geografia pátrias, relativas a características físicas e datas heroicas. Uma estrutura construída para garantir que não houvesse questionamento da ordem vigente. Não caberia a um cidadão dentre os que “não sabiam” questionar a decisão de um governante. Essa concepção, embora totalmente abandonada pelo meio científico, ainda tem muita força nas representações populares. É tão natural diante do olhar cotidiano que o conhecimento seja neutro e a decisão de um governante inquestionável quanto a simples observação de que a Terra é plana. Sob esse ponto de vista, não é possível ensinar que toda fala ou informação é feita a partir de uma posição, ou seja, tem partido. Não faz sentido, afinal, sob essa concepção existem informações neutras. Ocorre que, por si só, essa é uma concepção de conhecimento e de ensino.

O que esse movimento pretende é que todas as escolas sigam rigorosamente sua concepção, ou seu partido, de conhecimento e de educação. Daí que não faça sentido chamar o projeto de Escola sem Partido, e mesmo o apelido de Lei da Mordaça, com especial efeito propagandístico opositor, não corresponda plenamente ao que é o projeto. Não é uma mordaça, não querem calar os professores. Querem mais é que eles digam só o que os membros do movimento permitam que seja dito. É, na verdade, uma escola de partido único. E partido único a história nos ensina bem de onde vem e para onde vai. E somos contrários a ele.