Literatura e Educação

Por Fernanda
Flores, direção pedagógica

A Literatura é espaço de arte, e, como tal, é cultura a ser partilhada, conversada, analisada, sentida. Não imaginemos que sempre com conforto, sem conflitos e discordâncias e muito menos com leniência romântica, como se a diversidade e o contraditório não existissem.

Como defende Antonio Cândido[1], para que uma sociedade seja realmente justa deve-se pressupor, como inalienável, “o respeito pelos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis.”

Entendendo o papel da escola na formação de crianças e jovens com criticidade, compartilhamos dois excelentes textos que abordam essa preocupação e o caminhar indissociável entre Literatura e Educação:

Publicamos hoje “O que a Educação me ensinou sobre a Literatura e por que ambas andam ameaçadas”, de Natália Zuccala, professora na Escola da Vila de Língua Portuguesa e Literatura, escritora e dramaturga. Publicou seu primeiro livro, “Todo mundo quer ver o morto”, em 2017, pela editora Patuá, e integra o grupo “Escritorxs de quinta”. Esse texto foi originalmente publicado na revista digital Vício Velho.

Na próxima segunda, aguardem o texto “Porque Literatura não rima com censura”, de Sandra Medrano, mãe da Vila, pedagoga, mestra em Didática pela Universidade de São Paulo e especialista em literatura infantil e juvenil pela Universidade Autônoma de Barcelona. Atualmente é coordenadora pedagógica da área de Língua da Comunidade Educativa Cedac e membro da equipe editorial do Instituto Emília/Revista Emília. Seu artigo foi originalmente publicado no Blog das Letrinhas, da Companhia das Letras.


[1] CANDIDO, Antonio. Direitos Humanos e literatura. In: A.C.R. Fester (Org.) Direitos humanos E… Cjp / Ed. Brasiliense, 1989. p. 116 e 117.


O que a educação me ensinou sobre a Literatura e por que ambas andam ameaçadas

Por Natália Zuccala, professora de Língua
Portuguesa e Literatura

A ideia de que a literatura penetra, transpira, é porosa, isto é, de que o tecido literário permite e pressupõe uma postura ativa por parte do leitor foi o que eu aprendi de mais concreto como professora em sala de aula. Tenho lá minha formação acadêmica no curso de Letras na Universidade de São Paulo, me instrumentei e me armei durante os longos anos de graduação para poder falar sobre literatura, no entanto, muito do que diz respeito à parcela de vida que há em uma obra de arte compreendi de fato com meus alunos.

Um conceito caro aos educadores, daqueles que se fazem sentir na pele todos os dias entre o quadro negro e a primeira fileira, é a “transposição didática”. O nome dado por Chevallard é muito feliz, pois justamente se trata de uma transposição que os professores devem fazer de um conteúdo ou prática do campo científico/social para a escola, o ensino, o aluno. Existem, no processo da transposição do mundo para a sala de aula, diversas modificações necessárias para que este conteúdo ou prática se adeque ao jogo escolar e, é claro, parte do sentido real acaba se perdendo neste procedimento. A escola é, e deve ser para que ocorra o processo de ensino e aprendizagem, também uma transposição do real, um simulacro, uma virtualidade cheia de regras próprias. Este universo autônomo refrata e reflete o mundo a sua forma, às vezes tornando-o mais leve e transitável, às vezes endurecendo-o.

Dentro deste contexto, o professor tem a responsabilidade de, ao ler um romance, um poema ou uma peça de teatro em seus estudantes, realizar certos movimentos que permitam a eles relacionar-se com este material. Não que devamos afogá-los em diretrizes e certezas, pelo contrário, é necessário promover o encontro entre estes seres humanos e as palavras da forma mais autônoma possível. Afinal, queremos aproximar as práticas escolares das sociais, já que é mesmo uma das mais importantes funções da escola preparar o indivíduo para contribuir com a sociedade na qual está inserido. Para isso, é necessário que o professor se pergunte: como circulam socialmente estas obras? Sob quais circunstâncias? Por que e como lê-las? Que estratégias utilizamos para fazê-lo fora da escola? A partir dessas questões é que educadores e instituições chegam à atividades como escritas de resenha, seminários, debates.

Há alguns anos, parte do meu trabalho consiste em tentar ter sucesso neste movimento de aproximação entre adolescentes de 10 a 15 anos e obras de Italo Calvino, Mia Couto, Amós Oz, Sófocles… Não que a eles estejam de todo distantes estes autores ou obras, muito pelo contrário, cada um deles tem suas próprias experiências de vida, suas referências, suas famílias e é justamente por conta disso que eu vivo aprendendo mais sobre literatura com eles do que jamais pensei que fosse possível. O clichê do professor que aprende com o aluno não é mero malabarismo de humildade retórica, mas um pressuposto da nossa prática. Não acredito que haja bons professores que não estejam dispostos a aprender.

É também um clichê dizer que os jovens-de-hoje-em-dia leem menos dos que o de ontem, dizia-se isso na minha época de escola, diz-se isso hoje. Acontece que, no caso desta geração 2000, não poderiam estar mais enganados os que dizem isso. Eles leem muito, leem até demais: celulares, vídeos, placas, computadores, imagens, sons, a vida deles é toda leitura o tempo inteiro. Claro, talvez eles não leiam o que nós, autores, professores, beletristas consideramos boa literatura. Mas e o que mesmo é que nós temos a ver com isso?

Bem, o esforço por transpor didaticamente as práticas sociais de leitura para a célula sala de aula fez com que eu tivesse de sair deste lugar de quem somente aponta a falta de letramento das gerações para procurar trazer o que é considerado boa literatura, pela tradição e pela sociedade, aos jovens, que não são necessariamente bons leitores. Até porque é esta mesmo uma das minhas responsabilidades principais: formar bons leitores. Bem como é esta uma das responsabilidades principais da escola: aproximar os alunos da tradição. E, no meu começo, para fazer isso, a primeira estratégia que tentei empreender foi explorar a parcela penetrável dos livros.

Uma das grandes professoras que tive no curso de Letras me impressionava muito por conseguir fazer isso a todo tempo. Ela, docente na disciplina de Introdução aos Estudos Clássicos, atualizava com maestria as questões profundas de personagens importantes como Édipo, príncipe coríntio distante mais 2.500 anos da nossa realidade, e os fazia parecer com nossos jovens dilemas de 20 anos. Desde que comecei a lecionar, este segue sendo meu maior norte, tornar palpáveis e reais os conflitos de Gregor Samsa, Bernard Marx, Aquiles, Alice, Zezé, etc.

Não seria surpreendente dizer que talvez essa seja a tarefa mais fácil que tenho, além de ser  a mais prazerosa. Afinal, o material literário é em sua composição permeável, uns mais outros menos, é cheio de aberturas nas quais os alunos podem inserir-se, imagens nas quais espelhar sua subjetividade, signos plurissignificantes que promovem novos olhares para o mundo, espaços onde colocar-se intelectualmente, e não só onde se colocar, mas também muito do que se tirar de lá. De modo que não há grandes estratégias a serem realizadas, a não ser tornar evidentes estas característica que já são próprias da arte .

Lecionar fez com que eu não pudesse nunca mais deixar de perguntar às minhas palavras (e neste momento falo como escritora): é possível penetrar neste tecido literário que eu criei?, ou ele está fechado demais a ponto de não haver brechas para o leitor? As minhas construções (sintáticas, imagéticas, de narrativa) respiram? Sem dúvida seria necessário escrever outro texto que explicasse o que faz com que as grandes obras tenham estas características, também seria preciso falar sobre as estratégias didáticas que ajudam a despertar nos alunos uma postura ativa e perscrutadora. No entanto, com este relato tenho outro objetivo.

Se, por um lado, é sempre necessária uma boa dose de esforço para operar uma transposição didática bem sucedida, por outro, vejo hoje o quanto este esforço movimentou a mim, o quanto modificou a minha postura em relação à literatura. Ensinar devolve vida ao objeto de ensino, uma vida contumaz inclusive, porque as palavras pulsam no rosto, na fala e nos olhos dos alunos, porque vivem somente na medida em que são lidas, interpretadas, compreendidas e incompreendidas, na medida em que há leitores. Assim, ao mesmo tempo que faço a transposição, ela opera em mim também suas transformações. Eu tento aproximar o aluno do objeto e, na medida em que consigo isso, aproximo-me eu também com mais intensidade.

É claro que eu acredito na imensa importância da teoria e da crítica. Bakhtins, Lukácses, Schwartzes são imprescindíveis para o estudo da literatura, foram, e continuam sendo, primordiais para a minha formação. Aliás, são estes e outro grandes teóricos os que me ajudam a ler com meus alunos e construir análises mais complexas. Mas a força que existe em assistir e participar das descobertas literárias de um jovem leitor é inexprimível. Testemunhar um poema ganhando sentido para um grupo que, coletivamente, dá saltos interpretativos e compõe significados através do diálogo, da análise, da crise, da controvérsia, da observação é, além de emocionante, uma experiência muito construtiva para escritores e críticos. Porque as descobertas literárias marcam, modificam, transformam aspectos dos mais essenciais à existência, colocam em cheque nossas perspectivas de mundo ao tocarem no que há de mais estrutural nelas; seja através da identificação ou empatia com os personagens, seja através da dor ou da frustração que experienciamos com as narrativas, seja pelo ineditismo de suas composições: a arte instaura cosmos que se chocam com nossas representações de mundo a partir exatamente daquilo que temos em comum com ela, isto é, nos deixamos penetrar pela literatura na medida em que ela permite ser penetrável e deste intercâmbio não saímos ilesos. Seja como for, facilitar este tipo de experiência ensina sobre a literatura tanto quanto vivê-la como leitor. Bons leitores e bons autores sabem muito bem disto, e é por esse motivo que são tão perigosos.

Em um país como o nosso, nos quais as conquistas na educação ainda não podem ser consideradas sólidas e os seus pilares sofrem censuras, é papel dos educadores reforçar a sua própria importância. Somos fundamentais para formar bons leitores, bons estudantes, seres humanos plenamente capazes de conviver em um mundo letrado, indivíduos que produzam conhecimento, pessoas autônomas acima de tudo, que atuem em sociedade de maneira responsável. Acontece que não há bons professores que não conheçam bem o sentar na carteira. Nós, como todos os outros profissionais, devemos questionar a nossa prática, investigá-la, aprender mais sobre ela sempre, se quisermos melhorar. Não só em sala de aula com os nossos alunos, mas nas Universidades e na pesquisa acadêmica, talvez principalmente aí, pois somente a pesquisa é capaz de democratizar as descobertas feitas no microcosmos da escola, já que tem o poder de difundi-las. Deste modo, quando um governo ataca a pesquisa, o que está sendo atacado, claro, é o acesso ao saber. Se, além disso, o foco deste ataque são as ciências humanas, e dentre elas a literatura, então o que observamos não é só uma entrave ao alcance do conhecimento básico e instrumental, mas a esse tipo de experiência modificadora sobre a qual discorri durante este breve relato, ou seja, à construção de uma leitura complexa do mundo, à empatia, ao olhar crítico, à possibilidade de ressignificar seu contexto social e até mesmo à simples ludicidade. O que se deseja cercear é a possibilidade de construção da própria narrativa.

Nos últimos oito anos, aprendi em sala de aula a observar o pulsar da literatura, o ar que atravessa as palavras. Tenho entendido, nestes tempos, o quanto essas experiências podem censuradas por lideranças autoritárias em tempos de retrocesso. Mas o mais importante é o que ainda hei de ver, o que os últimos gestos dos movimentos estudantis têm deixado evidente: as conquistas na educação, mesmo que tímidas, são profundas e, por mais que se demore a alcançá-las, são perenes.