De faíscas e liberdade

Por Fermín Damirdjian, orientador do Ensino Médio

Situação difícil. Um rapaz de quinze anos tem uma festa na sexta-feira à noite. No dia seguinte, à tarde, iria à Avenida Paulista encontrar alguns amigos da escola antiga, com quem guarda fortes vínculos afetivos desde a primeira infância. Turma boa. Deve chegar em casa à noite, ainda que não tão tarde. No domingo, tem futebol às 10 horas, e o time combinou de depois almoçar na casa de um deles. Já fizeram a vaquinha pró-churrasco. Espetinhos de carne e de linguiça. Um pouco de música. Alguns inclusive tocam violão, pandeiro ou o que se tenha à mão. Logo mais, às 16 horas, acompanhariam a semifinal do Paulista pela TV. Esse é o plano para o fim de semana. E o anterior não teria sido muito diferente. A verdade é que a vida está divertidíssima. Os pais, no entanto, lhe dizem que é "muita coisa". Não dá pra fazer tudo.

Ao ouvir algo assim, o rapaz não consegue fazer nada, além de lançar uma expressão extremamente interrogativa, que em microssegundos se transforma em exclamativa, e, quase ao mesmo tempo, na mais absoluta indignação. O que, é claro, desperta as diversas regiões do cérebro, mais especificamente o corpo caloso, área responsável pelos impulsos emocionais. Há um esforço de algumas regiões do córtex para preparar a argumentação, munição que pode ser lançada já, ali mesmo, a meio caminho entre o quarto e o banheiro.

A vociferação começa com a pergunta básica, direta e objetiva: "Mas por que não???" "Porque queremos que pare um pouco em casa, não dá pra ser todo final de semana desse jeito". A resposta vem com autoridade. No entanto, não é difícil perceber que a pergunta ainda não foi respondida a contento. "Mas qual é o problema???" Em uma prova de filosofia, biologia ou história, isso seria algo como "Justifique sua resposta". "Eu e sua mãe não achamos que dá pra ser assim. É muita coisa. Pode escolher duas dessas coisas, mas não tudo." O rapaz se ressente. Não entende. Suas notas na escola são boas – o que no mundo adulto seria mais ou menos como estar quites com a Receita Federal. Ele alega que não liga pra bebida ou drogas. É fato, ele nunca chegara alterado em casa. E os pais sabem que ele não se expõe a riscos físicos. Não é de aprontar, não tem obsessão por confrontar autoridades, o rapaz vem crescendo bem, no sentido de não demonstrar amargura ou sofrimento muito além de alterações de humor comuns, mantendo em geral boa disposição em sua rotina. Não é aquela adolescência de manual, em que o cara se tranca no quarto e vai jantar de cara amarrada. Não. Essa visão é um clichê. Embora ela seja frequente, não é o único modelo, e a situação do nosso herói não é uma exceção em meio a muitos amigos e amigas que simplesmente se divertem com o ganho de autonomia.

Esse rapaz aprendeu recentemente a circular pela cidade, pratica esportes, estuda, vai bem na escola, é amável com os avós. Meio cabeça-dura de vez em quando, mas está bem. Está namorando, embora o relacionamento termine e recomece de maneira nebulosa, ao menos para os pais. Mas eles não pretendem acompanhar isso de perto, afinal, ele está criando a sua intimidade e eles entendem que esse é um campo onde só podem entrar quando solicitados. A mãe por vezes tenta algumas incursões, sem muito sucesso. Nada de mais. O cara está ótimo. Então por que diabos ele não pode passar o fim de semana sambando entre um bairro e outro, entre um programa e outro, programas esses permeados de boas amizades, vida afetiva, um pouco de esporte, um pouco de cultura… Fazendo jus à dúvida do réu: qual é exatamente o problema? "Justifique sua resposta." No rigor escolar, ainda falta aos responsáveis conquistarem o pleno acerto dessa questão. Tentaremos ajudá-los. E, ainda, buscaremos depreender disso uma reflexão a respeito de algo que permeia toda esta situação: a liberdade.

Algumas justificativas para limitar a programação deste adolescente poderiam se basear em riscos ou irresponsabilidade, considerando a obviedade que com frequência esses fatores andam juntos. Andar de madrugada pela cidade pode ser arriscado, bem como usar drogas. Mas esses riscos não parecem existir neste caso, e queremos avançar para além deles, que são elementos concretos e fáceis para justificar a limitação imposta pelos pais. A justificativa é mais sutil e mais complexa.

É inegável que a vida fora de casa está divertidíssima. A quantidade de novidades é infinitamente mais saborosa do que aquilo que se encontra no núcleo familiar. Embora ele não vá jantar de cara amarrada, a cabeça dele está longe, muito longe. Até conversa com a irmã e com os pais, mas vê-se claramente que seu espírito está entregue a um vasto parque de diversões que ele, também, passa a habitar. Os amigos são sua nova família. Só o tempo mostrará que eles vêm e vão, apesar dessa intensidade que parece determinante em sua rede de vínculos. Para ele, as inscrições terão a solidez das pinturas rupestres.

Mas quantas dessas pinturas sobreviveram aos milênios? Os arqueólogos sabem que muitos desses belos vestígios se apagaram, e inclusive essas que se veem guardam em sua composição química pigmentações de materiais diferentes, e de épocas com intervalos de tempo gigantescos – e, portanto, simbologias e culturas diferentes – à medida que foram sendo retocadas. Cada um desses autores, em sua releitura do que ali é retratado, deixou uma mostra de diferenças enormes em sua relação com a natureza. Interpretações teológicas distintas, religiosidades e estágios da evolução humanas com fortes discrepâncias entre os grupos humanos. Mas, é claro: as primeiras inscrições na parede de uma caverna ainda virgem são fundantes, e deram à caverna o marco da passagem da vida humana por ali, onde antes nada disso havia. O primeiro a pintar naquela caverna não vivia a consideração cabal de que sua pintura seria apagada ou talvez modificada com o tempo. Ele vivia o êxtase de sua primeira inscrição, seu primeiro registro no mundo. E constatar esse registro na parede da caverna reflete, também, em seu mundo interno. Seu orgulho de realização e a constatação da potência para modificar seu entorno são marcas tão externas quanto internas. Constituem o indivíduo e a cultura de seu grupo. Como é que as vivências de nosso adolescente não podem ser mais extasiantes que o pão com manteiga, no café da manhã de sua família?

A sua vivência fora de casa – sua capacidade de formar amigos, de ser parte de um time, de pegar ônibus, de dar risada, de entender um filme, de ser abraçado – é claramente formadora e necessária. Pelo resto da vida, ele terá de agir sobre o mundo e transformá-lo, e as vivências da infância e da adolescência imprimem em sua subjetividade o modus operandi necessário para ir avançando a cada etapa que vai se colocando, incessantemente, ao longo da vida.

Ocorre que esse salto, que se dá com especial intensidade na adolescência, também desorganiza. E não falamos aqui da organização ortopédica da semana, e sim da organização interna. O mundo está aí para ser saboreado, mas também para ser interpretado, decodificado, lido. Entender nossas reações emocionais em cada situação é uma tarefa dificílima. Entender o que acontece em um relacionamento amoroso é extremamente complexo. Lidar com obrigações escolares às quais muitas vezes não atribuímos muito sentido exige uma perseverança que não sabemos nem de onde tirar. Por vezes até damos conta de muita coisa aos quinze anos, mas não sabemos por que nem como. Fazer um uso parcimonioso desse novo espaço que se abre, vertiginosamente, à nossa frente, é uma cautela necessária. É preciso certo tempo para decodificar nossas vivências, para não restringir a nossa ação a meras respostas a estímulos. E isso é difícil de transmitir, pois esses estímulos podem ser de natureza saudável. Jogar bola, encontrar amigos, namorar, ir ao cinema… "Qual é o problema??", pergunta nosso jovem.

Eles não são o problema. A sua intensidade, por vezes, é. A rapidez com que surgem essas oportunidades frequentemente se traduz em uma cara de estafa, em olhares vagos, em distração excessiva. Parar no ambiente conhecido de casa, na rotina familiar é, sim, necessário para deglutir com certo cuidado toda essa novidade. Inclusive porque em algum momento riscos hão de aparecer, sim, mas não quisemos colocá-los aqui em nossa cena hipotética para não resumir tudo à segurança do lar nesse sentido: para fugir de drogas, doenças sexualmente transmissíveis, excessos de videogame e de mídias digitais, et cetera. Eles também podem entrar na conta, mas não faltam adolescentes que não se entregam a algum ou alguns desses fatores de forma exacerbada, e, ainda assim, é preciso certa negociação para dosar essa circulação fascinante pelo mundo.

Qualquer resposta simples é um erro. Com essas colocações, por exemplo, incorremos no risco de transmitir uma mensagem do tipo: "Nada como o resguardo do lar e do seio da família, para protegê-lo do mundo". Não se trata de operar em nenhum extremo. Trata-se de negociar.

Sim, é dificílimo explicar essa percepção que os pais podem ter ao intuir que há certa indigestão no filho ou na filha, com toda a vida que se abriu fora de casa. Isso nem sempre é palpável. Notas baixas, uma bebedeira ou outros problemas concretos facilitam a justificativa. Mas é preciso ir além disso, pois a vida é, justamente, mais do que prestar contas com notas escolares.

Qual é, assim, a liberdade possível de um adolescente? Ele é hábil fisicamente, pode andar pela cidade, tem vigor físico, articulação verbal, pode fazer uma porção de coisas. A liberdade possível será aquela que surgirá de uma boa negociação. Certa vez eu vi o psicólogo Julio Groppa Aquino dizer que é na tensão, nas faíscas dessa negociação onde se constitui o ato educativo. Concordo plenamente com isso. Os extremos erroneamente se mostram como soluções, mas com a vida aprendemos que disso saem muito mais do que faíscas. Da ausência de ponderações e de autoritarismo vazio surgem incêndios, e os danos são infinitamente mais profundos.


Referências: Café filosófico: "O fogo cruzado da educação contemporânea", com Julio Groppa Aquino