Instrumentos

Por Fermín Damirdjian, orientador educacional do Ensino Médio

Ötzi caminhava ofegante pela montanha nevada. O frio era fatal, mas não podia diminuir o ritmo. Ainda assim, seus ferimentos o obrigaram a fazer uma pausa para passar um pouco de ervas curativas em seu punho ferido. Uma vez sentado, não se furtou a comer alguma coisa. Foi sua última refeição, antes de ser assassinado pelas costas. Quando o encontraram morto, ele carregava um verdadeiro arsenal de objetos. Em seu cinto levava uma bolsa de pele que continha três tipos diferentes de elementos cortantes, além de uma grande agulha confeccionada com chifre de veado e madeira. Também carregava consigo uma pequena adaga feita a partir de uma rocha de quartzo, com uma bainha de fibras vegetais, bem como duas pontas de flechas soltas e outras 12 flechas sem ponta feitas de madeira de um arbusto chamado viburnum prunifolium. Viajava, ainda, com uma machadinha de cobre, um arco de madeira, duas pequenas caixas feitas de casca de bétula e mais dois cogumelos secos atravessados por uma fita de couro, que se acredita serem uma para uso medicinal e outra como material combustível para iniciar uma fogueira. Ao todo, carregava objetos feitos de 18 madeiras diferentes. Próximas ao seu corpo, foram encontradas cordas e uma rede que poderia ter servido para caçar passarinhos. Seu vestuário, composto de 5 tipos de peles diferentes, era muito completo e adequado ao frio intenso, e incluía ainda um eficiente calçado impermeável. 

Este indivíduo foi encontrado aproximadamente 5.300 anos após a sua morte. Naquela época a região em que ele deixou suas últimas pegadas estava longe de ser chamada de Alpes de Ötstal, onde hoje é a Suíça, a 3.210 metros de altitude. Encontrado por um casal de caminhantes suíços em 1991, este que foi chamado de Ötzi pela equipe de cientistas que o estudou, trouxe valiosas informações sobre o modo de vida na Idade do Cobre e encontra-se hoje devidamente refrigerado no museu Bolzano, Milão. Com o passar do tempo, as inovações tecnológicas foram permitindo cada vez mais informações sobre esse misterioso personagem. Foi com fotografias "multiespectrais" que se descobriu o dobro de tatuagens que se via a olho nu em 1991, saltando de 30 para 61 as grafias detectadas em sua pele durante os anos seguintes. E foi com avançadas técnicas de imagens infravermelhas que se desvendou o que ele comeu naquela que foi a sua última refeição, além de permitir definir a sua condição de homem de 45 anos que sofria com osteoporose; com Raios X de última geração encontrou-se ainda a ponta de flecha incrustada em seu ombro direito que ocasionou sua morte. Foi descongelado duas vezes para extrair amostras mais precisas de DNA, em 2000 e em 2009, para saber mais sobre sua origem étnica. 

Aqueles que lhe tiraram a vida deixaram-no perecer junto às suas dezenas de objetos, o que sugere uma motivação de vingança ou agressão por motivo que para nós é desconhecido, e para o qual não contamos com nenhuma tecnologia que possa dar mais detalhes sobre a cena ali ocorrida.

Graças a esses atentos caminhantes e às temperaturas baixíssimas às quais Ötzi esteve submetido em seu solitário cochilo de 5.300 anos, é que podemos saber algo sobre as possibilidades de um ser humano daquela época elaborar tantos materiais a ponto de mantê-lo vivo, caçando, caminhando e enfrentando situações tão austeras. Infelizmente para ele, não era o único a dominar instrumentos, e seus inimigos lhe acertaram com eficácia uma flecha com um potente arco, sabe-se lá fabricado por quem. 

É tentador pensar: o que aconteceria se um homem atual de 45 anos, tal como este que escreve, fosse encontrado morto e congelado daqui a 5.300 anos? Examinando meus bolsos, o que os humanos do futuro poderão deduzir é que o celular deveria servir para tudo, ou quase tudo, no início do século XXI. Ele só não me cobriria do frio nem me alimentaria com nutrientes vitais. De resto, sim, seria uma espécie de amuleto, ou objeto sagrado. Mas não mais especulemos sobre o futuro. Aproveitemos que temos entre nós Ötzi, nosso Homem da Idade do Cobre, para pensarmos sobre nosso presente. Quais diferenças podemos encontrar entre os instrumentos que ele carregava consigo, e este aparelho que levamos conosco para todo lugar? 

O bielo-russo Lev Semionovitch Vygotsky, expoente no estudo da natureza humana no século XX e um dos principais fundadores da chamada psicologia histórico-cultural, discorreu longamente sobre a importância crucial dos instrumentos no desenvolvimento da humanidade. Para além de seu óbvio papel utilitário, a miríade de objetos que Ötzi carregava não serviam apenas para combater o frio, a fome ou as desavenças com outros humanos. Os instrumentos são também elementos carregados de significações. Uma espada utilizada por um soldado do império romano no século V a.C. é diferente de uma arma carregada por um cavaleiro templário no século X ou um florete espanhol do século XV. Vygotsky ofereceu amplas bases para afirmar que os instrumentos são formas de agir sobre o mundo que nos rodeia, e o sentido concreto é inseparável do aspecto simbólico que rege essa relação, sendo a linguagem o máximo expoente dessa interpretação e a forma de se relacionar com nosso entorno. 

Em nosso intuito de transformar o mundo, insistimos em reinterpretá-lo a cada nova intervenção que nele fazemos. As projeções de figuras sobre as constelações ilustram bem essa ação. O céu nunca mais foi o mesmo depois da cultura grega, que também se transformou depois dos estudos de Copérnico. Em ambas as situações, o ser humano teve que ressignificar seu lugar no universo. 

Há, porém, um elemento curioso no instrumento sem o qual não podemos sair de casa nos dias de hoje. Vejamos: uma flecha só faz sentido quando disparada sobre um alce, um esquilo, uma árvore, um pássaro ou um humano, como foi o caso do pobre Ötzi. Uma pá tem sua máxima realização quando afunda sobre a terra, e um forno se realiza cada vez que abre a boca, seja para incluir uma lasanha crua, seja para devolvê-la gratinada. Já o celular nos oferece uma imagem estranha: quando vemos alguém utilizando esse aparelho, ele não parece estar agindo sobre o mundo da mesma forma que faz um mecânico com sua chave de fenda ou um médico com seu bisturi, ou ainda a cozinheira com sua colher e a panela. 

Estamos diante de uma lógica diferente. O celular – e isso poderia se estender para as mídias digitais em geral – se realiza a cada minuto que passa sem que o abandonemos. Diferente de uma flecha, ele não está destinado a distanciar-se de nós. Ao contrário, sua razão de ser se define na medida em que estendemos nosso uso com ele. Não é tão diferente do que foi a televisão, para as gerações anteriores. Porém, com a diferença de que a TV não oferecia tantos canais e desdobramentos ao mesmo tempo. A internet faz associações por conta própria. Ela não é passiva. É preciso certo esforço para ler as notícias de hoje, pois no meio do texto podemos aprofundar um aspecto de seu conteúdo, enquanto nas laterais podemos encontrar as passagens aéreas para os destinos que procuramos no dia anterior. 

Na escola, é visível a quantidade de adolescentes que chegam ao Ensino Médio cujo principal repertório de diversão gira em torno dos games. Estes, sofisticados e muito envolventes, absorvem a atenção e desconectam o usuário de seu entorno. Mas isso também pode ocorrer com aplicativos corriqueiros, como WhatsApp ou Instagram. Ou o aplicativo do banco ou o site de compras de quem esperamos uma resposta. Há de tudo ali. E sua lógica de navegação é sempre essa: quanto mais adiarmos o seu abandono, melhor. Isso não apenas porque o tempo é o valor da publicidade, mas porque assim o próprio aparelho se justifica em sua existência. E quanto mais aplicativos utilizarmos, mais celular queremos, com mais tela, mais memória, mais processador e mais armazenamento em nuvem. 

O jornal O Estado de São Paulo, em 14 de outubro último, publicou reportagem acerca de um abrangente estudo da Universidade Federal do Espírito Santo. A pesquisa detectou que um a cada quatro jovens do Brasil tem dependência de internet. É preciso considerar que muitos dos que não têm o diagnóstico de dependência fazem muito uso, reduzindo tempo de leitura, de esportes, ou a simples capacidade de se entediar e, por consequência, observar o mundo ao redor e inventar algo pra fazer, que vai desde procurar um amigo, desenhar, arrumar o quarto, chutar a bola contra a parede ou cozinhar. Diferentemente de um violão ou uma cadeira, as mídias digitais não são objetos inanimados. Elas fazem associações e procuram nos captar com seus próprios recursos. Afinal, tornou-se comum encontrar notebooks com uma fitinha no lugar da câmera. Ora, mas que diabos isso significa? Grande parte da tragédia do personagem David, em "2001, uma odisseia no espaço", teria sido evitada com uma fita crepe no olho vermelho de HAL9000.

Não se trata aqui de demonizar a tecnologia digital. Com ela é possível, sim, reinterpretar o mundo por meio de filmes, fotografias, escritos, leituras, jogos interessantes, comunicação eficiente e afetiva com pessoas distantes. Por meio dela, ideias são propagadas, crenças são construídas ou destruídas, eleições são ganhas ou perdidas. É claro que ela gera transformações. Mas há alguns fatores preponderantes inerentes a seu uso que extrapolam essas características: ele tem alta tendência a oferecer experiências fragmentadas, e paradoxalmente incita a um uso interminável. 

Pode ser que a minha leitura do mundo esteja equivocada, mas a lógica desse novo instrumento parece ser diferente de tudo o que nos antecedeu. Ao contrário de uma adaga, uma vassoura, uma máquina de escrever ou uma embarcação, os instrumentos digitais são vorazes com seus fantásticos desdobramentos imagéticos, e criam outros mundos fascinantes que nos permitem esquecer muitas agruras da nossa vida cotidiana. É claro que a leitura de um livro, ou das estrelas, ou um filme já fazem isso, mas cada um deles é uma coisa só, e não muitas ao mesmo tempo. 

Seria bonito presenciar uma conversa entre Ötzi e Vygotsky a respeito do hominídeo do século XXI, mas infelizmente não temos, ainda, recursos para tanto. Só nos resta observar o mundo e utilizar nossos instrumentos com certa cautela. Instrumentos que sempre foram meio, e agora parecem ter se transformado em fim. 


Ouça o podcast A dose certa de internet, por Fermín Damirdjian.