Como é bom ter amigos virtuais! Nossa colega argentina Melina Furman nos brindou com esse artigo e gentilmente autorizou sua publicação em nosso blog. Em tempos de coronavírus, podemos experimentar muitas das dicas compartilhadas. Boa leitura!
Atividades com as crianças em casa em tempos de coronavírus
Por Melina Furman, bióloga da Universidade de Buenos Aires e Dra. em Educação pela Universidade de Columbia, EUA
Artigo publicado no El Baikal em 16/3/2020.
Estamos em tempos de pandemia, que obrigam muitos de nós a ficar em casa porque as aulas estão suspensas, ou porque a família está em quarentena, ou porque decidimos nos “guardar” por alguns dias. É um momento de incerteza, em que a nossa vida cotidiana muda e temos que nos adaptar ao cenário de estarmos todos (inclusive crianças) em casa enquanto esperamos que a onda de contágio passe e, em breve, esperamos, as coisas voltem ao normal.
É aí que surge a pergunta que não quer calar: o que podemos fazer com as crianças em casa? Como aproveitar esse tempo para gerar oportunidades de aprender e compartilhar em família?
Uma ideia que pode nos ajudar a pensar em atividades para fazer com as crianças (especialmente quando não conseguimos pensar em mais nada!) é a das inteligências múltiplas. Nos anos 80, o psicólogo Howard Gardner introduziu um conceito que revolucionou a própria noção de “inteligência”. Ao analisar casos de “gênios” (pessoas com talentos muito exacerbados, como os prodígios musicais, matemáticos ou literários), estudar os efeitos de lesões cerebrais sobre certas capacidades específicas e comparar os registros de desenvolvimento cognitivo de populações em todo o mundo, ele postulou a existência de diferentes tipos de inteligência.
Pensando na educação das crianças, um dos aspectos mais importantes dessa teoria é a possibilidade de conceber a inteligência não como uma “coisa”, mas sim como um repertório, um leque de capacidades que vale a pena nutrir. Assim, Gardner identificou oito inteligências diferentes:
- Lógico-matemática: é a capacidade de resolver cálculos,
problemas abstratos e jogos de estratégia, analisar variáveis, raciocinar de
maneira lógica e identificar padrões numéricos; - Linguística: implica a capacidade de estabelecer
comunicação em diferentes formatos baseado na linguagem verbal: ler, escrever,
debater e compreender o que o interlocutor está dizendo; - Musical: é a capacidade de interagir com instrumentos ou
modos de produzir som em geral e de criar e interpretar música; - Cinético-corporal: refere-se à capacidade de usar o próprio
corpo para resolver problemas (por exemplo, chutar uma bola em direção ao gol)
ou para expressar sentimentos (por exemplo, dançar); - Espacial: é a capacidade de entender e pensar sobre o espaço
por meio de imagens. Usamos essa inteligência quando nos orientamos ou
interpretamos um mapa, quando visualizamos um objeto de diferentes ângulos e quando
montamos quebra-cabeças; - Naturalista: empregamos esse tipo de inteligência quando
observamos a natureza ou os elementos à nossa volta. Gardner especula que esse
tipo de inteligência surgiu nos primórdios da humanidade, da necessidade dos caçadores-coletores
de identificar padrões e mudanças no ambiente. Trata-se da capacidade de perceber
as relações que existem entre várias espécies ou grupos de objetos e pessoas,
por meio da identificação de padrões, semelhanças e diferenças, e da elaboração
de classificações; - Intrapessoal: implica a capacidade de nos conhecermos de
maneira profunda, de modo que nos compreendamos e orientemos nosso próprio comportamento.
Uma pessoa com alta inteligência intrapessoal tem um modelo de si que lhe
permite trabalhar com suas próprias emoções e interagir de maneira positiva com
seu entorno. Essa inteligência se relaciona com a capacidade de planejar e alcançar
metas relevantes, avaliar pontos fortes e limitações pessoais, controlar os
impulsos ou persistir apesar das frustrações; e - Interpessoal: envolve a capacidade de ler as emoções
dos demais e interagir com outras pessoas de modo produtivo. Está vinculada à
habilidade de cooperar com outros, de “colocar-se no lugar do outro”, de
interpretar os desejos e as necessidades dos demais e de liderar um grupo.
Muitos especialistas debatem com fervor sobre o número de inteligências diferentes que Gardner identificou. São realmente oito? Existem sobreposições entre elas? Não estamos nos esquecendo de outras inteligências importantes? Existe alguma inteligência mais ampla que se sobrepõe a várias das anteriores?
Quando se trata de encontrar o que fazer com as crianças em casa, e também no meu papel de educadora e de mãe, não faz muita diferença se são oito, onze ou quarenta e três. Neste caso, não estamos trabalhando com a ideia de inteligências sob o ponto de vista da ciência cognitiva. A maior qualidade do conceito de inteligências múltiplas é que ele traz à baila o valor de outros tipos de talentos extremamente relevantes para a vida que sempre foram considerados “menores” sob a perspectiva da tradição acadêmica pura.
A seguir, proponho algumas estratégias para trabalhar as diferentes inteligências em família (que, obviamente, variam de acordo com a idade das crianças), que estão no meu livro “Guía para criar hijos curiosos” (Siglo XXI Editores, ainda sem edição no Brasil).
- Lógico-matemática: jogar jogos de mesa que envolvam lógica
ou cálculo mental, como dominó, escopa ou xadrez. Medir os objetos da casa de diferentes
modos (pesar, medir o comprimento com diversos instrumentos). Resolver desafios
matemáticos. Criar e depois decifrar um código secreto. Aprender a programar
com plataformas como Scratch Junior ou Lightbot. Fazer cálculos mentais em
situações do dia-a-dia (quando pensamos, por exemplo, no que temos e no que nos
falta, ou em como repartir o que temos entre várias pessoas). Fazer
experimentos para responder perguntas e analisar os resultados; - Linguística: inventar histórias curtas entre várias pessoas,
como no jogo “cadáver esquisito”. Escrever cartas (ou emails!) para pessoas que
vivem longe. Escutar ou ler contos e depois conversar sobre a história. Buscar novas
informações na internet ou em livros sobre algo que apareceu na história para continuar
explorando o tema. Criar e escrever as instruções de um jogo ou de uma
brincadeira. Brincar com letras e palavras em jogos como Scrabble. Escrever uma
música, um poema ou um rap sobre algum tema. Escrever as pistas de uma caça ao tesouro
para outras pessoas acharem (por exemplo, as crianças escrevem as instruções para
os adultos); - Musical: inventar músicas, cantar juntos, encontrar os
instrumentos “escondidos” em uma música. Gravar-se com o celular cantando e
depois escutar. Inventar formas de acompanhar uma música fazendo percussão com
o corpo ou com outros objetos. Brincar com ritmos diferentes, tocar um
instrumento, criar uma melodia para um poema, musicalizar uma história; - Cinético-corporal: dançar, criar coreografias, seguir
sequências de movimentos com o corpo. Praticar a motricidade fina com
brincadeiras como espetar objetos com palitos. Brincar de mímica; - Espacial: construir com blocos ou materiais reciclados.
Usar massinha ou argila para esculpir objetos. Representar situações por meio
de imagens ou esquemas. Fazer brincadeiras de orientação como “cabra-cega”. Conduzir
alguém com os olhos vendados de uma ponta a outra da casa dando-lhe instruções
de movimento. Desenhar e ler mapas que levem a um “tesouro” escondido em casa; - Naturalista: observar e cuidar de seres vivos
(mascotes, plantas). Registrar como crescem ao longo do tempo e criar um diário
para anotar os resultados. Coletar elementos da natureza (folhas, bichos,
pedras) para desenhá-los ou classificá-los e montar um álbum ou uma coleção. Buscar
padrões nos objetos (por exemplo: “o que todos esses insetos têm em comum?”); - Intrapessoal: escrever ideias e sentimentos em um
diário. Fazer uma cápsula do tempo para as crianças guardarem objetos que são
importantes para elas e cartas que elas escreverem para elas mesmas, para
voltar a abrir em alguns anos. Tirar fotos de coisas que chamem a atenção e
comentar depois. Criar um plano para aprender algo novo. Fazer uma lista das
coisas que queremos fazer naquele dia (para aprender a organizar o tempo); e - Interpessoal: fazer brincadeiras que exijam colaborar
com outros, como corridas de saco e construções em grupo. Conversar sobre como
as coisas funcionaram em grupo e por que elas foram bem ou o que se poderia
fazer para melhorar as que não saíram tão bem. Ensinar algo que sabemos a outra
pessoa (por exemplo, gravando um tutorial em vídeo). Planejar um “acampamento”
dentro de casa (por exemplo, armando uma tenda caseira com mantas e cadeiras) e
fazer uma lista de coisas que todos queremos levar.
Espero que essa lista anterior os ajude a despertar ideias (e a identificar coisas que vocês já fazem)! Seguramente vocês descobrirão muitas outras atividades que valem a pena compartilhar com os filhos. Nesses anos de trabalho com pais sempre me surpreendo e me maravilho com a criatividade que todas as famílias têm.
Ficar em casa pode nos dar uma oportunidade impensada de nos conectarmos com nossos filhos: passar tempo juntos sem pressa, brincar por brincar e conversar por conversar. Não precisamos desenvolver ideias sofisticadas. Trata-se, nada mais, nada menos, de nos encontrarmos e desfrutarmos mutuamente da nossa companhia.