Cyclamens, Bem-te-vis, Bernardos e Juremas

Se você fosse um cronista, o que escreveria sobre o isolamento social? 

Escola da Vila

Os alunos e alunas dos 1ºs anos do Ensino Médio têm como um dos estudos de língua portuguesa a crônica. Esse gênero está muito ligado ao jornal, versa sobre os temas mais diversos, desde fatos corriqueiros até grandes acontecimentos. O cronista é aquele que olha para as coisas de modo enviesado e cortante, por isso, apesar de mergulhado no presente, se distancia dos fatos para narrá-los e os olha com outros olhos. Foi o que fez a aluna Marina Zilles ao escrever sua crônica a partir da proposta inspirada no momento presente de pandemia que estamos vivendo.

Proposta do professor: Da minha janela, vejo, ouço, percebo…  

Boa parte do nosso contato com o mundo exterior se dá pelas janelas. Ruas vazias, céus límpidos, silêncio. Nuvens caminham, crescem, desfazem-se... silêncio quebrado por crianças... silêncio quebrado por crianças enraivecidas, por pais desesperados, por manifestações políticas… franca espionagem de janelas e sacadas: gente tomando sol, gente que se exercita… Pássaros, bichos... As janelas abrem, hoje, um universo de acontecimentos.

Cyclamens, Bem-te-vis, Bernardos e Juremas

Eu queria ser um desses bem-te-vis que voam em bando na frente da janela do meu quarto. Voam tão faceiros… Eu acordo sem ter dormido, abro a janela sem a ter fechado e olho pra eles sem que eles olhem pra mim. Eu gostaria muito de ser um deles, queria voar assim, aglomerada, vivendo a cidade, aproveitando os parques e campus universitário deserto perto da minha casa, respirando o ar inválido de São Paulo, visitando as ruas com nomes de rios soterrados, adentrando em uma observação atenta e com um fundo antropológico para ver se, dessa vez, esses humanos asquerosos aprendem algo. 

Às vezes, em meio aos móveis do meu quarto, já cansados da minha patética presença, penso seriamente em escalar a minha minibiblioteca, que contém somente os livros que me aquecem o coração, e arrancar a rede da janela, segurar firme nas bordas das paredes, impulsionar o corpo para frente e para trás, para frente e para trás, e, enfim me juntar com esses bem-te-vis que me veem tão mal pelas frestas de seus olhares mais concentrados no próprio voo do que na minha presença inanimada. 

Queria eu poder voar com eles, gostaria muito de ouvir as histórias que eles têm a me contar. Poderíamos falar de como a chuva anda menos amarga, como o céu tem mais estrelas, como as ruas andam mais calmas e cheias de uma morbidez feliz. Poderíamos zombar dos humanos e falar como eles são esquisitos. Sempre reclamam que nunca têm tempo para descansar, pois “a correria da metrópole consome o indivíduo”. Mas quando eles precisam ficar em casa, eles só querem voltar às ruas, voltar para a correria. Será que sentem falta da adrenalina? Será que é a correria física que consome a “complexidade do ser”? Acho esquisito… Hoje mesmo vi a moça do quarto andar enlouquecer... Mesmo que agora ela durma, pelo menos, 8 horas por noite, faça seus exercícios, coma suas refeições e leia seus livros. Ela enlouqueceu… O sistema de internet estava sobrecarregado.

A verdade é que não aguento mais conversar comigo mesma. Às vezes é bom, faz bem. Mas não dá mais. Acabamos nos tornando os conhecidos-desconhecidos-chatos de nós mesmos. Desistimos de tudo 249 mil vezes por dia. Tentamos cuidar de plantas para não nos sentirmos tão sozinhos. Cantamos músicas dos artistas de que gostamos, pois não gostamos suficientemente de nós para cantar as nossas. Vemos fotos, pois queremos sentir o gosto que a vida deixou em nossos lábios, após nos dar um beijo molhado e demorado de despedida. E por isso, olhamos aflitiva e esperançosamente pela janela sempre que escutamos qualquer ruído, pois algo nos faz acreditar que pode ser ela dizendo que agora volta, e que não vai nunca mais.

Às vezes nos pegamos pensando na falha do concreto e no ponto em que o capitalismo voraz, que permeia nossa sociedade, chegou. É como se nossa “civilização” fosse uma vila construída sobre um solo contaminado com rejeitos tóxicos. Criamos teorias loucas de como as coisas poderiam ter acontecido se fosse tudo diferente… Se eu tivesse falado aquilo com ela… Se o resultado das eleições fosse outro… Se eu tivesse estudado astrologia nas férias… Se eu tivesse desistido de cuidar da Cyclamen que cresce na cabeceira da minha cama… Se eu tivesse mudado de país… Se eu tivesse lido aquele livro… Se eu tivesse ido ao bar nas noites de quinta encontrar Camilla e trocar beijos com Amanda… Se eu tivesse escutado mais a minha mãe… Como seríamos? Onde estaríamos?

Toda essa morbidez aflitiva de quem não pode mais com a própria consciência me toma as forças, a noção de tempo e a altura das paredes do meu quarto. É como se eu estivesse sintomática, mas sem a enfermidade. Como se donzelas histéricas chorassem ribozima nos meus pulmões e arranhassem minha traqueia com suas garras recém-afiadas. Sinto as lágrimas delas percorrerem todas as minhas terminações nervosas, assim me impedindo de sentir o ritmo calmo e faminto com que a minha própria mobília me devora. Sem comunicação com o “fora”, sendo somente utilitária, acabo virando mais um elemento inanimado nesse quarto abafado de luz amarelada e cartazes molhados pelos fluídos corporais que troquei em manifestações e carnavais. 

Pelo menos mantenho uma rotina noturna: toda noite, antes de me deitar para não dormir, me dirijo para a porta. Lá coloquei um papel intitulado “DIAS NA QUARENTENA”, e, como um presidiário dos filmes de Hollywood, marco o dia que se passou. Finalizo o ritual com um suspiro profundo e demorado. Bernardo, o violão daqui de casa, diz que é tudo besteira, as coisas não estão tão ruins. Ele diz que tudo vai passar, só é preciso ter calma. Acho fofo como ele tenta me animar. Jurema, a guitarra, nos olha com malícia, e guarda para si o comentário. Olho em volta, caio na cama, apago a luz e sou um deles. Estática e à espera do dia em que voarei pelas ruas da cidade outra vez.

Ass.: MarinaZzizi