Sonhos de um isolado

Escola da Vila - A Tentação de Santo Antão (Salvador Dalí)

Os alunos e alunas dos 1ºs anos do Ensino Médio têm como um dos estudos de língua portuguesa a crônica. Esse gênero está muito ligado ao jornal, versa sobre os temas mais diversos, desde fatos corriqueiros até grandes acontecimentos. O cronista é aquele que olha para as coisas de modo enviesado e cortante, por isso, apesar de mergulhado no presente, se distancia dos fatos para narrá-los e os olha com outros olhos.

Proposta: Viagem à roda do meu quarto

Esse é o título de um livro publicado em 1794 em que o autor, Xavier de Maistre, trata de muitos assuntos, mas todos eles a partir dos móveis, objetos e o que faz no seu próprio quarto. Em tempos de isolamento, quando nossos pensamentos não estão mais em contato real com os espaços sociais, resta-nos acessar o mundo pelo que temos ao nosso alcance. Se flanar pelas ruas não é mais possível, a imaginação não conhece limites - e os limites de um quarto podem ser infinitos. A proposta, claro, é mais subjetiva, mas não menos interessante.

Sonhos de um isolado

Por Catalina Gillio

Os sonhos nunca foram um tema relevante na minha vida. Eles mudam de acordo com meu humor, minhas preocupações do momento ou até pelos assuntos do dia. A maioria das vezes não lembro deles e, quando consigo recordá-los, não dizem muito para mim. De vez em quando até os considero engraçados; contar para os amigos como um assunto passageiro causava algumas risadas e surpresas, era divertido, para logo esquecê-los de novo. Isso, quando não havia quarentena.

Surpreendentemente, o isolamento social mudou de um jeito drástico esse aspecto na minha vida. Todos os dias acordo com uma nova anedota, histórias extravagantes, de muita ficção e loucura. Alguns dias senti que estava enlouquecendo. Casas na praia habitadas por pessoas com doenças raríssimas, montanhas-russas quebradas nos parques de diversão com amigos, viagens de trem com família de outros países, invasões zumbi que incluíam o jogador de São Paulo, Igor Gomes. Impressionante era o fato de eu não ter relação com muitos desses personagens ou situações. Os sonhos não tinham motivo nem base. Eram um imenso “Alice no país das maravilhas”. 

Não sei se são causados pelo excesso de tempo que tenho para pensar. Porém, suponho que essa abundância de tempo deixa todo mundo pensativo. Desse pensamento, completamente distorcido, surgem meus sonhos. Inacreditável ou não, quanto mais tempo eu fico trancado aqui dentro, mais saio para fora nos meus sonhos. E tudo parece mais normal e real apesar da anormalidade e irrealidade deles. Afinal, não estamos no normal nem quando acordamos. 

Guardei isso para mim até ouvir minha mãe reclamando pela estranheza dos seus sonhos. Guardei isso até ouvir a Melanie, minha amiga, contando as esquisitices dos seus sonhos. Guardei isso até ouvir o meu irmão mais novo explicando como os Pokémons voadores lutavam nos sonhos dele. Foi nesse momento que afirmei que não estava endoidando.

Minha irmã mais nova, diferente dos meus, sempre teve sonhos cômicos e peculiares. Quando pequena, ela fez uma pergunta muito intrigante: “Quando dormimos, nós saímos da cama para ir sonhar?”. Será? Os sonhos vão além do que conhecemos. Neles encontramos de tudo. É como viver outra vida, mas com acontecimentos totalmente desconectados. Pode acontecer um sonho de vários sonhos. Muitas vezes até parece uma mudança de cena, como um filme. Isso mesmo, um filme. 

Nossa imaginação não tem limites. Com toda a privação que estamos vivendo, sai de um jeito ou de outro. Essa vontade e desejo do coitado isolado, de sair na rua, de dar um rolê por aí com amigos, aparece no sonho. Mil vezes exagerado. Talvez esse rolê por aí acabe sendo frustrado pelos aliens que conquistaram nosso planeta. 

Mas é pensar muito e criar demais. Claramente eu não sou Paul McCartney para sonhar a melodia de uma música. Me limito aos filmes de apocalipse e fim do mundo. É estranho até. Não sonho melodias, mas consigo sonhar as maiores esquisitices. Bando de pessoas usando máscara, pandemias, vírus de alto contágio. O engraçado é que, acordado, o meu sonho continua. 

É assim mesmo. Aprendermos a viver temporariamente em um isolamento. Dessa ninguém sai ileso. No fim das contas, os sonhos do isolado são a saída de emergência para esse mundo que ansiamos viver novamente.