Lembranças de quarentena

Se você fosse um cronista, o que escreveria sobre o isolamento social? 

Os alunos e alunas dos 1ºs anos do Ensino Médio têm como um dos estudos de língua portuguesa a crônica. Esse gênero está muito ligado ao jornal, versa sobre os temas mais diversos, desde fatos corriqueiros até grandes acontecimentos. O cronista é aquele que olha para as coisas de modo enviesado e cortante, por isso, apesar de mergulhado no presente, se distancia dos fatos para narrá-los e os olha com outros olhos. 

Lembranças de quarentena

Por Miguel Reis, aluno do 1º ano do Ensino Médio

A memória se semeia com histórias. E estas não estão apenas em livros, quadros ou documentos históricos. Toda sorte de objetos, em qualquer parte, pode nos transportar no tempo - eles estão mais perto do que pensamos.

Refletindo na cama, olhava pro teto, a lâmpada iluminava os objetos das largas prateleiras. Como na época dos escravos, ao lado da cama, o criado-mudo carrega a pilha de livros, o cortador de unha e os óculos de grau, silenciosamente.

Na prateleira, a foto que mais me recorre às boas lembranças: eu e minha vó. Era aniversário de 92 anos dela. Apesar de estar provisoriamente em uma cadeira de rodas, estava muito feliz de receber toda a família na sua casa. Ela sorria e oferecia os salgados pro pessoal. Os quibes, as bolinhas de queijo eram bons, mas todos esperavam ansiosos pelas coxinhas de frango, principalmente eu. Mesmo na cadeira de rodas, vó Alzira tinha disposição  para oferecer os quitutes. O que ela faria nesse confinamento?

Se ela estivesse aqui, com certeza não ficaria parada. Sairia e se tornaria um novo meme dos velhinhos que querem fugir da quarentena. Na certa, distribuiria bolinhos de chuva pela vizinhança.

Na estante de cima, descansava uma maquete do estádio do meu time de coração. De fato, já fazia um tempinho que eu não ia ver o Coringão jogar em Itaquera, mas não deixava de ser fiel, assistindo a todos os jogos nos botecos do meu bairro, na companhia do meu pai. Mas, e agora com a paralisação dos campeonatos?! Como faria sem ver meu time todas as quartas e finais de semana?

Assistir as reprises de 10 anos atrás de vitórias memoráveis não se comparam às possíveis goleadas que poderiam acontecer de fato.

Meu armário guardava uma linda recordação: a velha televisão de papelão, feita por mim e pela minha antiga babá, respirava o pó do tempo. A TV era uma caixa de papelão, a tela de papel desenhado. O controle era uma manivela do lado da caixa, que ao rodar trocava de canal: canal dos barcos, do arco-íris e do quintal. Caso os temas se atualizassem para os assuntos de agora, seria frequente ver imagens das bolas com ventosas - simulando o vírus, cenas de enterros e gráficos da pandemia. Todos os canais tratando do mesmo assunto.

Na mesma prateleira, uma foto com meus amigos na piscina de um sítio em São Roque. Deu saudades das brincadeiras, da pizza e  das conversas banais dos finais de semana. Com a quarentena, a falta deles me deixa triste. O máximo que eu consigo para anestesiar essa ausência são as ligações de vídeo ao anoitecer.

No cantinho da sapateira, vejo minha chuteira, que há tempos não uso. Talvez, aquela seja minha maior saudade, jogar futebol com os amigos. Sentir o contato humano na partida, os dribles que agitam a galera, os sorrisos entre você e o seu parceiro quando juntos faziam uma jogada espetacular. A atual restrição de manter contatos físicos me faz pensar que tudo aquilo era a real vitória do nosso futebol.

Todos os objetos do meu quarto guardam uma memória e uma história vivida. A única exceção são as roupas novas que recebi como presente de aniversário, dias antes do início da reclusão. Por conta da quarentena, elas terão de esperar no guarda-roupa para estrearem em uma festa. Essas ainda vão construir a sua história, espero que feliz.