Algumas considerações sobre a nova escultura da Vila


Por Bartolomeo Gelpi

Recentemente, a Escola da Vila adquiriu uma nova obra de arte, a escultura O Descanso da Sala, 2006, de José Spaniol, artista brasileiro e pai da escola. Dando continuidade à sua política de comprar e permutar com artistas obras de arte, a Vila nos permite o convívio com mais esta obra, o que, como é sabido por todos os que já cotejaram uma obra com sua reprodução, possibilita relações muito mais generosas e legítimas à natureza do trabalho do que quando o fazemos através de uma reprodução.

A cadeira duplicada de Spaniol foi colocada no gramado ao lado da biblioteca da unidade Morumbi. Abordando a obra dentro do conjunto de trabalhos do artista, podemos identificar algumas características recorrentes, como a multiplicação de um elemento, a dualidade deste, a utilização de formas feitas para conter ou abrigar algo, etc. Porém, as particularidades da forma desta escultura e, principalmente, sua relação com o entorno formam o viés adotado nesta tentativa de aproximação que inicio aqui.

Ainda que o título reforce a ideia da ausência de humanos – pois, se uma cadeira descansa, é porque não há humano algum para sentar-se nela – não deixa de ser uma ausência evocativa. Dentre todo o mobiliário típico de uma casa tal como nós a entendemos, talvez a cadeira seja aquele que mais fortemente evoca a presença de uma pessoa. Se comparada a outros móveis de uma sala, com os quais nosso corpo não assume uma proximidade tão grande durante o uso, como um armário ou mesmo uma mesa, percebemos isso com facilidade, mas a característica se mantém mesmo quando confrontamos uma cadeira, por exemplo, com uma cama. Ambas são feitas para suportar nossos corpos, mas é no uso da cadeira que assumimos posição semelhante à do próprio objeto (quando sentados, nossas pernas se tornam paralelas às da cadeira, nossas nádegas ao assento, as costas ao encosto), o que não ocorre no caso da cama (deitada numa cama, uma pessoa terá suas pernas perpendiculares à perna daquele móvel, sua cabeça tampouco será paralela ao espaldar do móvel).

Se pensarmos no contexto da escola, esta evocação é atendida de pronto pelo estudante; a cadeira é o móvel que o acomoda durante a maior parte de suas práticas discentes. Porém, vale lembrar que, no meio acadêmico, ela descreve uma disciplina ("a cadeira de estética está a cargo do professor fulano de tal"). Em um possível modo de ver esta escultura, estudantes e professores estão ali representados nas extremidades de um mesmo corpo. Como estas extremidades se ligam pela inversão de uma mesma forma, podemos tomá-la como metáfora de pormenores e vieses que regem esta relação: pergunta e resposta, autoridade e confronto, demanda e realização, juventude e maturidade, etc.

Após algumas esculturas da mesma família de trabalhos feitas de madeira, Spaniol passou a utilizar o aço na sua série de móveis duplicados/invertidos, lustrados a ponto de refletirem tudo a seu redor. A superfície refletora, percebida nas estreitas faixas que descrevem os planos que delimitam este sólido, delega ao entorno a responsabilidade de definir suas cores, ou ainda mais, posto que só vemos a cadeira quando ela reflete algo. Uma vez que não possui cor e textura próprias que explicitem seu material, a superfície refletora delega ao entorno a função de defini-la. Assim, o prédio da biblioteca, as plantas da escola, os transeuntes e mesmo o céu particularizam esta como a "nossa" cadeira, a cadeira da Vila.

Dando um passo para trás, abrindo nosso plano de visão, sua proximidade com a biblioteca faz com que esta escultura possa ser vista ao mesmo tempo em que nossos estudantes e professores, sentados à biblioteca, fazem suas lições, trabalhos, corrigem provas aplicadas, discutem apresentações a serem feitas, enfim, exercitam suas cabeças e expandem seus conhecimentos. Nosso mais alto edifício ecoa a verticalidade dos quatro metros da peça, como que a sugerir, por este parentesco formal, alguma coerência com a natureza do edifício. Posto isso, cabe dizer que ali, além da biblioteca, temos salas de aula, direção pedagógica e o auditório da escola, ou, em outras palavras, o local para pesquisa, planejamento, aprendizagem, diretrizes e debate.

De par com esta remissão a determinados fazeres do edifício, a já citada verticalidade deve ser observada para além do simples paralelo formal. Símbolo de ascensão, progresso, tomada de consciência, a verticalidade, mesmo quando dada em diversas culturas pela forma de animais apoiados sobre suas patas de trás, empinados, erguidos, representa o próprio Homem. Em uma dessas representações zoomórficas da verticalidade a serpente erguida, como a serpente de plumas, símbolo da união de forças contrárias, seria uma entidade representando a súbita hibridação das espécies aparentemente irreconciliáveis: união inesperada de matéria pesada aderente ao solo e de substância alada... Esse réptil retesado na sua vontade de transcender à sua condição é a imagem pela qual é representado o advento do homem, do ser dotado de um sentido que lhe permite agir em função de uma realidade invisível, ausente do mundo das aparências. *

Certamente, José Spaniol não pretendia fazer de sua escultura um manifesto pró-educação (seria redutor para a obra trancá-la dentro disto). Porém, dentre as muitas possibilidades de interpretação desta escultura e, mais uma vez, na especificidade de relações que se dão, aqui, com a nossa escultura, é difícil não vê-la como um generoso lembrete e estímulo às nossas mais altas aspirações em nossas práticas cotidianas como estudantes e educadores em geral.

*CHEVALIER, Jean e GHEERBRANDT, Alain. Dicionário de Símbolos (pp. 946 e 947). 17ª edição. Rio de Janeiro, Ed. José Olympio, 2002.