Discutir política em casa: “A arte da guerra” no seio da família

Padlock at Gate

_

Por Fermín Damirdjian

"Esse portão é o mais perfeito símbolo da ostentação do capitalismo especulativo imobiliário."

Era uma terça-feira de manhã. A discrepância na idade dos filhos não facilitava a turbulenta saída da família após o café. Enquanto o autor da frase acima estava no primeiro ano do Ensino Médio, a caçula ainda começava o sexto ano do Ensino Fundamental. Naquela semana a família sobrevivia com um carro só, enquanto o outro estava na oficina. Mãe e pai trabalhavam em bairros bem diferentes, e a logística planejada para aquela semana de um só carro não estava funcionando bem. Na terça-feira em questão, eles não podiam sair atrasados. O pai tinha um compromisso ainda mais cedo do que o usual. O mais velho já tinha seus três atrasos na escola. Mais um, seria fatal.

Quando se mudaram para a Granja não havia problema em chegar à Escola da Vila, mas nos últimos cinco anos todos os carros da América Latina pareciam ter se mudado para São Paulo. O café da manhã tinha sido bem longe do agradável. O pai estava com um resfriado que não sarava, e a menina tinha problemas com as amigas na escola. Reunião marcada com a orientação para sexta-feira. O filho mais velho não estava exatamente alterado com essas causas mundanas. Levantar rápido da cama, escovar os dentes, vestir-se e juntar o material da escola não eram prioridades. Apesar dos gritos dos adultos, o mundo podia esperar. Nessa rotina, a fechadura do portão, que clamava por reparos fazia já algumas semanas, não tinha recebido maior atenção do que alguns insultos durante o entrar e sair dessa tão típica família. Naquela terça-feira a fechadura entendeu que era um bom momento para a sua manifestação. Se alguns estavam travando avenidas pela cidade afora, por que ela não podia manifestar seus anseios mecânicos a seus irresponsáveis proprietários? Insensível a esse engarrafamento doméstico, o indignado estudante da família não perdeu a oportunidade de lançar algumas bombas verbais de efeito moral sobre a família. Como denunciar a eles que o portão era um objeto de consumo, que representava o elo entre a mediocridade pequeno-burguesa paulistana e as forças malignas da especulação imobiliária globalizada. Eram 6h27 da manhã.

Relatos desse tipo são pra lá de comuns na sala da orientação educacional do Ensino Médio. Para além da correria diária, a persistência em posições políticas apressadas e radicais são uma constante na lista de confrontos cotidianos entre pais e filhos. Não menos impactante é a orientação dessas posições políticas. Aos olhos dos adultos, são simplistas, ingênuas, imediatistas e – espanto –retrógradas.

Soam frequentemente como importações superficiais de discursos alheios, mas com o fervor de quem estaria convicto deles por décadas. Diante dessa aliança entre ingenuidade e convicção, os pais se assombram, e as reações mais comuns vão desde o simples desdém até broncas veementes cujo objetivo é "endireitar" o filho antes que seja tarde.

O contato com professores que não acreditam na neutralidade do ensino e que procuram transmitir aos alunos um olhar acurado sobre a mídia ao invés de entendê-la como uma inquestionável fonte de informação e pesquisa; as crescentes manifestações de rua no país, com todas as suas variações em dimensão, caráter, natureza, participantes e motivos; a sensibilização para causas que extrapolem apenas o bem-estar próprio são todos fatores que incrementam elementos de ordem subjetiva que se fazem fundamentais para o desenvolvimento do indivíduo: ganhar espaço, encontrar maior alcance das próprias ações, ser autônomo.

Mas autônomo em relação a quem? O parâmetro inicial, sem conseguir fugir aqui de significante obviedade, são os pais. Isso significaria que todos os que querem crescer devem necessariamente confrontar e afrontar os pais, agindo e propondo tudo aquilo que é diametralmente oposto ao que eles sempre quiseram ensinar? Não, não necessariamente.

O que vai ocorrer, sim, é algum grau de tensão, inerente a todo e qualquer processo educativo. Tanto na escola como na família, para ficar nos exemplos mais evidentes, é impossível educar e propor a ampliação do repertório dos jovens sem apresentar-lhes desafios. Esses desafios podem ser de ordem prática, moral, afetiva, intelectual ou, na maioria das vezes, uma mistura disso tudo.  Mas a tensão é a variável que está sempre presente. Pode ocorrer em um grau inevitável a qualquer negociação ou pode se tornar insuportável, levando em casos extremos à situação mais aberrante para qualquer pai ou mãe, que é a sensação de estar perdendo o filho ou a filha.

A discussão política, por vezes, tensiona as relações a níveis bem próximos do insuportável. Seria ingenuidade pensar que se tratam apenas de ideias? De posições que podem ser discutidas durante o almoço de domingo sem impedir que, a partir das 17 horas, pai e filho se sentem no sofá para torcer pelo mesmo time? Ou será que o posicionamento político tem o mesmo caráter de uma filha cuja opinião negativa sobre a saia da mãe nada mais é do que uma forma de agredi-la?

É preciso pensar que sim: parte da motivação na busca por ideias diferentes da família é que justamente há curiosidade para ir além daquilo que os pais propõem. Isso resulta em afirmar com veemência cada uma das novas descobertas. Estas, são expostas como troféus resultantes da exploração própria. São tesouros encontrados fora de casa e devem ser festejados e expostos em praça pública. Ideias políticas são conquistas adquiridas por mérito próprio em mares alheios.

Em alguma medida, essa exploração é fundamental se os pais se propõem a saborear a boa realização do ato de ter filhos: vê-los ganhar autonomia para que desenvolvam seus próprios projetos de vida.

Dependendo do tipo de relação que há entre pais e filhos, no entanto, a exploração de outras posições políticas pode, sim, ser raivosa. Mas se os pais não carregarem essa discussão com altas doses de ansiedade, medo e indignação, pode ser possível que mantenham o desafio ao filho em um âmbito saudável: o de saber sustentar com bons argumentos as suas opiniões perante um adulto.

Provavelmente, a posição de um jovem seja mais raivosa que a desse adulto, pois aquele ainda precisa cavar um espaço que o outro já tem garantido. Não há, a princípio, grandes motivos para que um pai se sinta ameaçado com um filho que propõe ideias tão diferentes das suas, a não ser que queira que ele pense de forma idêntica. Se lhe parecem absurdos seus argumentos, que os confronte, então, com os seus.

Não sejamos ingênuos: o esforço para manter a discussão no âmbito verbal é grande e desgastante. A reação mais óbvia pode ser, sim, a de rir desses argumentos ou de destruí-los, tentando transmitir toda nossa experiência de vida sobre eles. Mas, nesse caso, podemos estar justamente nos esquecendo de algumas passagens importantes da nossa trajetória pessoal. Ninguém vira adulto pisando com precisão cirúrgica em cada uma das pegadas dos pais. Isso só nos levaria a crer que se um filho parece estar se transformando em nós, ele não está se transformando em alguém.

Ou, posto de outra forma: se tudo estiver dando certo, é porque alguma coisa está dando errado.

Ninguém propõe que o caminho é óbvio e simples. Nem para os pais, nem para os filhos. Abrir o portão e sair da casa dos pais não é um ato que se faça sempre com segurança. A agressividade, por vezes, se faz necessária para enfrentar o que há além daquela fechadura enguiçada, que nos protegeu tão bem por tanto tempo mas que, a partir dos quinze, começamos a criticar com inigualável contundência.

Para os pais, haja paciência! Mas para os filhos, é um começo.